Literatura, Livros, Textos

Livros ao kilo

img_20170128_212822_885O passeio de sábado pelo bairro revelou a surpresa de uma feira de livros usados no Centro Cultural que fica paredes-meias com a igreja e o campo de futebol. Lá dentro, o grande salão e o seu palco eram somente mesas e mesas escondidas por um invejável e talvez invencível império de livros. Postos de lado os corredores em alemão e em luxemburguês, refugiei-me durante uma boa hora no canto dos autores clássicos franceses. A venda era ao kilo e barata. Não fosse o caso de um dia ter de os fazer atravessar países, não teria trazido apenas estes. Bom… Talvez lá volte amanhã.
Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Pensamentos

As armas de Chekov

No mundo da escrita, há uma dica que dá pelo nome de Chekov’s Razor — a navalha de Chekov –, atribuída ao famoso contista russo,  que recomendaria que se eliminassem sempre as três primeiras páginas do primeiro rascunho de um texto.

Dizia ele que era preciso não adiar demasiado o começo da acção, e que geralmente se gastavam três páginas em descrições vãs, detalhes supérfluos, caminhos secundários e aspectos de somenos importância.

Tenho algumas reservas em relação a esta arma de Chekov. Sou mais adepto da outra, a Chekov’s Gun — a pistola de Chekov, princípio em que o escritor russo defende que, se no início de um texto ou de uma peça se fala de ou se expõe uma arma, é muito necessário que alguém a dispare num capítulo mais adiante. Em todo o caso, não acredito que na literatura se deva fincar muito o pé em concepções que facilmente se tornam movediças, ou sequer tentar estabelecer regras universais.

O problema das regras em literatura será, talvez mesmo, o simples facto de elas serem aplicadas à literatura. A navalha de Chekov, por exemplo, seria uma ferramenta de grande préstimo para os discursos do Gaspar, e a pistola… Bom, o melhor será não falarmos da pistola.

 

Hugo Picado de Almeida

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Cinema, Literatura, Pensamentos, Política

Miseráveis talvez hoje, mas não amanhã

Não sei se Victor Hugo sabia inglês e se lhe teria sido possível, portanto, ter compreendido a versão hollywoodesco-musical do seu romance Os Miseráveis, mas estou em crer que sim, pois certamente teria podido reconhecer as suas personagens e a trama que ele próprio engendrou.

A interpretação de Tom Hooper, agora nos cinemas, é capaz de fazer chorar o deserto mais seco e exaurido, pelo que tem sobre os Homens o natural poder de os arrasar, deixar de joelhos mesmo sentados na cadeira, deixando-os à mercê dos pensamentos e perspectivas mais negras sobre os imponderáveis da vida. Pensei que talvez tivesse interesse sentar Victor Hugo num dos cadeirões estofados dos nossos cinemas e pô-lo frente a frente com a criação que, em boa verdade, é sua. Seria interessante pô-lo ali e ver se chorava como os demais — e isso seria até muito bem feito, por ser sua a matéria-prima de um dos filmes mais tristes e duros que o cinema já me deu a ver –, ora por sentir culpa por ter feito Os Miseráveis tão evidentemente, tão brutalmente miseráveis, ora pelos avisos e acusações que o filme torna evidentes, de indicador espetado fora da tela; razão única, aliás, para que o filme não se exiba em 3D, imagino.

Depois de pôr tudo em perigo — da família ao amor, à justiça, ao passado, à honestidade e à camaradagem e, enfim, à própria vida — para provocar nos espectadores a experiência da angústia com diferentes fundações e roupagens, de Verão e de Inverno, o filme parece deixar a promessa de uma vitória: «Do you hear the people sing? / Say, do you hear the distant drums? /It is the future that they bring / when tomorrow comes!»
É esse um dos méritos da literatura. Se não o de nos salvar por comparação, pelo menos o de propor saídas e apontar caminhos certos, por onde têm seguidos os Homens bons, os melhores.

Procurei um dia Victor Hugo no seu número 6, Place des Voges, mas ele já não estava lá. Penso que gostaria de tê-lo na sala do cinema, para que o pudessemos cumprimentar à saída, neste Portugal de 2013, tão precisado de tambores e barricadas, amor e camaradas.

 

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, Literatura, Livros

Os donos dos livros

No meu quarto tenho mais de 500 livros, cujos autores, editoras, edição e respectivo ano, número de páginas e idioma reúno numa lista que actualizo de cada vez que um novo volume entra pela porta.

Não sou tão dono de nada quanto sou dono de livros.

E sei que, ainda que eles sejam só 500 e eu tenha apenas 24 anos, é grande a probabilidade de não os vir a ler a todos. Sei bem que comprarei mais, muitos mais, e que alguns desses passarão à frente de alguns já inquilinos das minhas estantes. E sei também que alguns desses que comprarei acabarão por permanecer sossegados nas prateleiras a ver outros, mais antigos, serem lidos no seu lugar.

Nunca desejei ser rico como aqueles que julgam que a riqueza em si é um valor a perseguir. Gostava de viver fazendo apenas aquilo de que gosto e com certo desafogo, é claro, mas talvez gostasse sobretudo de ter dinheiro para poder andar por aí, tranquilamente, lendo todos os livros que me seguram as estantes e os que ainda as hão-de segurar.

Gostava, sei-o bem, de me dedicar a eles.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Livros, Pensamentos, Sem categoria

4 de Janeiro

São alguns os escritores que admiro, e Albert Camus é certamente um deles.

Assinala-se hoje o aniversário da morte de Camus. Hoje mesmo, dia 4 de Janeiro, o dia em que eu havia de nascer, 39 anos mais tarde, precisamente 1448 kms, em linha recta, a sudoeste de Villeblevin, vila onde nesse 4 de Janeiro de 1960 Camus viria a morrer, dentro do Facel Vega conduzido pelo seu editor, Michel Gallimard. Também como Camus, também eu publiquei o meu primeiro livro aos 22 anos. 

E a estas coincidências me agarro, pois que elas me permitem fazer engrossar os ombros e procurar legitimidade para ir à estante e trocar a ordem aos livros, fingindo que o «A» de Almeida e o «C» de Camus são consecutivos, e que o meu Cortejo pode seguir-se ao Estrangeiro dele, por exemplo. Posso assim acreditar que um dia terei o talento para lhe morder os calcanhares. Convém ter modelos que nos puxem os olhos para cima.

Dispenso, porém, imitá-lo nesse fatídico abraço inesperado e não consentido a uma árvore de Villeblevin. Espero que nestas coisas se possa escolher.

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Literatura, Política

Primeiro vieram buscar os…

Talvez seja mesmo como Marx dizia, que a história se repete sempre; primeiro como tragédia, depois como farsa. É que aceitar como justificada a brutal carga policial em frente à Assembleia da República é deixar-se imbuir da lógica enviesada, malabarista do governo; é perder o norte e aceitar abdicar de mais um bocadinho de liberdade; é aceitar que direitos já temos muitos e que a democracia atingiu o seu zénite; no fundo, é caminhar, novamente, neste sentido:

Primeiro vieram buscar os que insultavam o governo,
E eu não me preocupei, porque nunca insultei o governo.

Depois vieram buscar os que usavam máscaras,
E eu não disse nada, porque nunca usei máscara.

Depois vieram buscar os que atiravam pedras,
Mas eu não disse nada, porque também nunca atirei pedras.

Depois vieram buscar-me a mim,
Mas já não havia quem me pudesse defender.

Hugo Picado de Almeida,
a partir do poema Primeiro vieram buscar os comunistas, de Martin Niemöller

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Cultura, Literatura, Política

Se rima, então deve ser verdade

António Aleixo, poeta e vendedor de cautelas, oferecia nas suas quadras pedaços de sabedoria com a mesma facilidade com que certamente vendia a sorte.

Há nas suas quadras imediatas como que aforismos inteligentes, daquela inteligência simples e musicalmente ressoante que o povo muitas vezes esconde. Deixo aqui apenas duas — que dando pouco se aguça a vontade de mais –, e nem preciso de as endereçar a ninguém para que percebam como podem, ainda hoje, sobretudo hoje, ser perfeitamente dirigidas a alvos que tão bem conhecemos.

«Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo,
Calai-vos, que pode o povo
Qu’rer um mundo novo a sério.»

«Tu, que tanto prometeste
Enquanto nada podias
hoje que podes — esqueceste
Tudo o que prometias…», in Este Livros Que Vos Deixo…, de António Aleixo

Quem assim ataca os seus alvos não apenas os insulta; sai do acto ele próprio elevado.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Livros, Pensamentos

Perguntar não ofende, mas às vezes aleija

Estou hoje em condições de afirmar que é para mim uma espécie de castigo quando me perguntam sobre o que é um livro que esteja a escrever no momento.

É que, quando um livro está acabado, é possível olhar para trás e ver o que foi e o que não foi feito, arranjar-lhe explicações passíveis de apresentação, mas numa obra em curso não há retrovisor que nos valha. A história acontece por todos os lados e ao mesmo tempo, segue atrás de nós, afasta-se pelas laterais e escapa-se à nossa frente, rebenta-nos as costuras às mãos feitas redes que tentam equilibrá-las todas, com sentido e brilhantismo malabarista. Uma história inacabada tem o problema dos panoramas: não é possível abarcar todo o conjunto de uma só vez, geralmente até porque parte dele não existe, e se existe está ainda exposto às mais tolazes e inesperadas alterações, ou a que lhe retirem o chão debaixo dos pés.

Não se pode falar bem de um livro inacabado porque não se podem confessar, ou por vezes sequer apreender, as motivações que nos animam durante o processo, as questões que nos assolam, ou os desejos que seguimos. A pior forma de perceber um carro em movimento é seguindo dentro dele.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Livros, Pessoas

Homem-de-escrever

Há dias, a Forbes anunciou uma lista dos autores mais bem pagos do mercado livreiro mundial. Quem surge à cabeça é James Patterson, um norte-americano que em 2011 teve ganhos de 94 milhões de dólares, ano em que escreveu nada mais nada menos do que 14 livros. Sim, senhoras e senhores, 14 livros! Mais do que um livro por mês, quando visto o ano pelo retrovisor. Pasme-se! Pasme-se e corra-se a comprar um par de joelheiras — ou então não, para que o sofrimento e a adoração sejam mais exultantes –, para que possamos deitar-nos por terra, postrando-nos aos divinos pés de tão produtiva cabeça. Dos seus 105 livros, 14 são de 2011, 13 são de 2012, e já estão até prontos três para sair em 2013. E a tendência verifica-se em anos anteriores.

Não estamos, evidentemente, já na presença de um homem, mas sim de uma máquina — máquina de escrever, naturalmente. E James Patterson partilha com as suas congéneres mecânicas o talento: bater texto sobre as teclas. É que as máquinas de escrever despem-se de criatividade, a fim de não introduzirem nos textos que recitam alguma coisa que não lhes pertença; elas são máquinas de precisão. Assim será forçosamente a obra de Patterson: texto batido recorrendo aos mesmo artifícios bárbaros e aos golpes baixo da arte capitalizada, mercantilizada, porque neles não pode empenhar qualquer talento ou criatividade. Não há tempo para isso. Haverá prova melhor de que já não se trata de literatura, mas de mera escrita?

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Pensamentos

Gaiola procura pássaro solteiro, honesto, carinhoso

Kafka terá escrito um dia: «Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.»

Parecendo surreal, a frase agarra a realidade de forma exemplar. É que raras vezes são os pássaros a internarem-se em gaiolas propositadamente, e os leitores de histórias de espiões sabê-lo-ão bem: o pássaro está na gaiola. A raposa entrou na toca .
Ora, aqui, é sempre a gaiola quem procura o pássaro, ou que o alicia a entrar, dourando as grades para o seduzir, usando dos mais ilustres subterfúgios para o levar à certa. Os pássaros vivem ao engano, a correr, ou a voar, atrás do prejuízo, a reboque do percurso que as gaiolas traçam para si e para eles; são elas que comandam o jogo, são elas que sabem o que sucederá a seguir.

Sejamos, pois, gaiolas. Afinal, mais vale um pássaro na mão, quando o pássaro não somos nós.

 

Hugo Picado de Almeida

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