O furacão Sandy vai atingir Nova Iorque nas próximas horas, e estamos todos ligados a webcams onde secretamente esperamos ver repetido o cenário d’ O Dia Depois de Amanhã, ou de qualquer outro filme da espécie. A catástrofe iminente faz-nos abrandar o carro para ver os acidentados, e o ecrã promete transmitir-nos o desastre em directo. Entre o cinema e o real não há para nós, deste lado do ecrã e do ocenao, qualquer diferença.
Abro o site da Sandycam (o carácter espectacular do evento começa logo aqui, no nome desta webcam) e, antes mesmo de conseguir visualizar o vídeo, a página em branco, a carregar, devolve-me a voz quase computacional, fantasmagórica, policial de um homem que numa voz monocórdica avisa:
«…Serious threat to life and property exists. Damaging winds are expected. Winds will be capable of downing trees and snapping off large tree branches. Power outages can be widespread and last at least several days. Debris will block some roads. Most poorly anchored mobile homes will be damaged. Other homes may have damage to shingles (…) and gutters if these items are not properly secured. Loose outdoor items will become airborne, causing additional damage (…). High windows may be damaged due to flying debris (…)»
E a voz não pára. Continua em velocidade rápida e ritmo constante, com as previsões meteorológicas, com os cálculos para a altura das ondas em várias zonas da costa, picos da tempestade, velocidade dos ventos nas diferentes regiões e ao longo das horas, zonas mais ameaçadas, características dos potenciais riscos, níveis de alerta, conselhos, transportes públicos para os abrigos… E por trás, barulhos ocasionais, como se a chuva também tivesse sido gravada, e carros de vez em quando, e o vento intenso a soprar, uma ambulância que passa e talvez até um helicóptero ao longe ou ondas a rebentar contra um paredão. A certa altura, a voz é quase imperceptível, depois melhora. E depois recomeça. Percebo então que se trata de uma gravação, e tudo se torna ainda mais estranho. Pergunto-me: haverá alguém a ouvir? Faz-me lembrar, de novo, os filmes, como se de uma daquelas gravações postas em repetição contínua, ad infinitum, se tratasse. Como se a gravação tivesse sido preparada como ferramenta para que os eventuais sobreviventes possam continuar a governar-se num cenário pós-apocalíptico onde, de ouvido colado a um rádio a pilhas, ela é tudo aquilo que conseguem sintonizar, no meio de uma chuva de estática.
E subitamente percebo que é precisamente disso que se trata. E que é por isso que a gravação está em repetição. Reparo agora que a transmissão de vídeo nem sequer carregou, mas já isso não me interessa; a gravação sonora não pára. Recomeça, repete partes, mas não pára. E é extensa, dura largos minutos. Ouço os mesmos alertas várias vezes e não deixo de pensar num grupo sujo, desirmanado e remediado, numa carrinha pick-up estacionada sob o telhado de zinco torcido de um antigo posto de combustíveis, fervendo a água numa fogueira e numa panela suja, enquanto o rádio em que procuram notícias lá vai transmitindo as mesmas informações, uma e outra vez. Tudo nos é dado por forma a que possamos assistir, sentar-nos e ver o espectáculo: as notícias reforçam que a Bolsa de Nova Iorque fechou pela primeira vez desde o 11 de Setembro, que o Metro da “cidade que nunca dorme” está parado, que as escolas estão fechadas, que as ruas estão desertas.
Tudo parece impossível, material de cinema, cenário, a tal ponto que fica apenas a pergunta: será que todos estão em casa por precaução, por segurança, ou estão todos em casa para que todos, sem excepção, possam assistir ao espectáculo em directo, nos ecrãs? O Mayor de Nova Iorque disse-o mesmo , falando pela rádio: «Esta noite a Broadway vai estar fechada, por isso pode ser uma boa oportunidade para permanecerem em casa, comerem uma sandes do frigorífico e ficarem a ver televisão.» Filme da vida que imita a ficção? Para que todos possam ser suas testemunhas, como se a tempestade pudesse chegar e passar sem que se desse por ela?
O rádio, a voz fantasmagórica que nos chega já sem o corpo de onde partiu — ou que se calhar nunca chegou a tê-lo, porque computacional, o que é mais ainda — é precisamente o ponto central na construção desta narrativa da catástrofe. Tal como na ficção, é preciso que este elemento já sem tempo, já sem referências, que se repete e perpetua, já sem corpo não cesse de transmitir. É ele a banda-sonora do cataclismo, é ele que aproxima o real da ficção e que pode assim servir-nos a catástrofe de bandeja. Todas as histórias precisam de um narrador. A Natureza monta o seu espectáculo; nós, pela nossa parte, cooperamos como podemos na composição do quadro.
Enquanto se ouve a gravação tem-se a certeza de que a catástrofe é real e não pode já deixar de acontecer, e se os Homens confiaram aos computadores a tarefa de informar e alertar os cidadãos, sabemos já que eles nada podem fazer, e que provavelmente já fugiram do local. A partir de agora, todos experimentarão a catástrofe pelo ecrã — já nem sequer pela janela pois os avisos dizem para correr as cortinas, que ela se pode partir –, sem lhe tocar, sem a sofrer, sem a sentir. Tudo remete para o ecrã.
Depois de tudo isto, podemos pensar, como certamente o faria Baudrillard: sem a gravação, sem as webcams apontadas às ruas, sem os alertas alarmados nos nossos jornais, chegaria a haver catástrofe? É que, em primeiro lugar, e além de tudo aquilo que a catástrofe possa vir a ser, ela vai acontecer da forma como vai acontecer porque todos se comportam em concordância.
Hugo Picado de Almeida