[para o início de um texto]
Tudo começou com uma sombra – afirmação desde já audaciosa e merecedora de atenção, uma vez que, a bem da verdade, nada há que comece pela sombra. De facto, antes dela, há já pelo menos duas coisas: o Sol – ou outra fonte de luz no seu lugar – e o corpo onde ele embate para a provocar. Mas a sombra, já o adivinhamos, nem chega a ser o terceiro elemento, mas somente o quarto, pois ela depende ainda de uma superfície onde se projectar. Uma sombra não é uma mancha, mas pode parecer-se com ela. Se esteticamente ambas podem ser iguais, virtualmente indistinguíveis uma da outra, é na sua substância que diferem: na mancha, o que a causa está no exacto sítio onde ela se manifesta; na sombra não. Na mancha, há coincidência e partilha; na sombra, ausência e distância. Não será de estranhar, por isso, que para as gentes da Rue d’Orchampt tudo tenha parecido começar com uma sombra. Ou uma mancha.
Hugo Picado de Almeida