Livros

A censura onde menos se espera

Soube, no outro dia, através do blog Caldeirão Voltaire, que as Livrarias Bulhosa suspenderam um funcionário que esteve presente numa manifestação na Feira do Livro de Lisboa 2012, por este ter declarado à SIC que os funcionários do grupo estavam com os salários em atraso e subsídios por pagar.

Sempre pensei que uma livraria seria sempre um baluarte da palavra e da liberdade de expressão, mas suponho que o povo tenha razão, mais uma vez: Em casa de ferreiro, espeto de pau.

Sobre o tema é ainda importante indicar o artigo de Jaime Bulhosa, um dos fundadores das referidas livrarias (mas não seu actual proprietário) e proprietário da livraria Pó dos Livros, onde este defende o seu nome e explica a história da Bulhosa.

 

Hugo Picado de Almeida

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Media, Pensamentos

As palavras (sobr)e as armas

Ficámos hoje a saber que em Portugal existem cerca de um milhão e quatrocentas mil armas ilegais. Ora, como em qualquer peça jornalística é preciso ir ouvir os dois lados da barricada – tantas vezes possíveis de divisão sumária entre o lado sério e o lado ridículo −, alguém se lembrou de dizer a já célebre frase «as armas não matam ninguém, as pessoas é que matam». Acredite o leitor que realmente é assim, pois quando não são manejadas pelas pessoas, facas e pistolas ocupam-se habitualmente em almoços-convívio, excursões a Fátima e noitadas de bridge, e é mais comum encontrá-las bronzeando o metal na praia, ou mesmo bebericando whiskey num qualquer café-concerto do que irrompendo por instituições bancárias adentro. Isso sim, isso só o fazem quando, infelizes, lhes acontece serem sequestrados por algum moinante.

Marshall McLuhan ficaria furioso ao ouvir uma tal frase, pois argumentava ele: «Aquilo que convencionalmente dizemos dos media, nomeadamente, que o que conta é o modo como são usados, é a atitude estupidificada do idiota tecnológico.» Mais afirmava McLuhan que dizer que, em si, um qualquer meio não é bom nem mau é tão sem sentido como dizer que uma tarte de maçã não é boa nem má, pois o que conta é o que fazemos com ela.

Conviria então lembrar ao senhor que hoje achou por bem sair em defesa do bom carácter das armas que as palavras, por sua vez e porque são conteúdo, podem efectivamente ser boas ou más; elas não são inócuas, mas polissémicas, e quando são assim mal usadas expõem ao ridículo quem as diz.

 

Hugo Picado de Almeida

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Cinema, Literatura, Pensamentos

O marketing do real

É comum dizermos que as melhores histórias são as verídicas. Mas por que razão o dizemos?

É que, vistas bem as coisas, as histórias verídicas vêm em bem menor número do que as demais, porque apenas uma fracção do real tem interesse como história a ser contada. Aliás, curiosa e sintomaticamente, temos que as histórias verídicas que nos chegam são aquelas que fogem ao quotidiano, são as inesperadas; por outras palavras, são aquelas que nos parecem saídas da ficção.

O marketing da literatura e do cinema sabe-o já há muito tempo, e não se coíbe de nos alertar quando uma narrativa é «baseada numa história verídica». E porquê? Porque isso chama em nós esse apetite por um certo real extraordinário. Porque isso vende.

Mas o real que nos chega nunca é o real ele próprio. Mesmo uma autobiografia, na medida em que revê ou traduz uma experiência, é já e sempre uma construção em torno dela. Aliás, é assim que o marketing se defende legalmente: «baseado numa história verídica», recordemos.

As melhores histórias talvez não sejam, então, tanto as verídicas, mas sobretudo as que nos são contadas como se o fossem.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Política

Recapitalizar a palavra

O problema da política é o descapitalizar da palavra.

Há uma razão para que o dicionário conte com milhares de entradas, assim como há uma razão para que haja contratos feitos sobre a honra do nome e do que é dito. As palavras têm valor; diferentes valores, mas sobre todos, o valor do seu significado, a importância de significarem isto e não aquilo. E é isso que a política combate.

A política despe a palavra e prostitui-a. Vendendo-a, sacrificando-a a uma troca de poder – da palavra para quem a toma −, torna-a puro artifício, fantasia a seu serviço, disfarce sem valor, circulando entre a mentira e a verdade.

O que mata a comunicação, e, bem assim, a política, é a transformação da palavra em mera ferramenta. Como dizia Ani DiFranco: «Toda a ferramenta é uma arma, se empunhada adequadamente.»

Hoje, dia 25 de Abril, convém lembrar que a revolução foi feita sem disparar armas. Que a política deixe de fazê-lo também.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Pensamentos

A rotina é um caminho

Quando se monta um projecto, fugir à rotina é uma ilusão a evitar. A rotina é boa, mesmo quando não parece estar a resultar. É que ela é mais processo do que resultado.

Rotina vem do francês route (caminho, estrada), e por sinuoso que seja, cada um deve saber definir para si o caminho que o levará ao destino procurado.

A rotina nem sempre produz (bons) resultados, é certo, mas o que interessa nela é o processo. Assim como neste blog, também fora dele procuro escrever todos os dias: a minha tese, o livro actualmente em curso, etc. Como dizia Walter Mosley, é preciso tentar escrever [é possível pensar aqui qualquer outro projecto que se tenham em mãos] um pouco todos os dias. Muitas vezes não se consegue mais do que rever uma frase, corrigir um erro, ou apenas reler alguns parágrafos, mas isso é suficiente para «manter a história viva por mais vinte e quatro horas», e é isso que é preciso fazer, parafraseando o autor norte-americano: «Manter a mente aberta e atenta ao projecto em mãos».

Abandonar a auto-estrada em todas as saídas que se nos apresentam nunca levou ninguém ao seu destino.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Livros

Coisas d’escritas #3

Ler sempre, ler muito. Para que se possa alimentar o desejo de um dia vir a escrever bem, é preciso saciar desde sempre o insaciável apetite da leitura.

Hoje, Dia Mundial do Livro, é preciso lembrar que ler faz não só bem à escrita mas também à vida ela própria. Almada Negreiros media assim a importância dos livros na vida dos Homens: «Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve haver certamente outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estarei perdido.»

 

Marshall McLuhan e Quentin Fiore (2008 [1967]), coord. Jerome Angel, The Medium is the Massage, Londres: Penguin Books, pp.34-37

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Pessoas, Política

Capitalismo Cultural e a «caridadezinha»

Deparei-me, noutro dia, com um artigo no blog A Devida Comédia sobre mais uma «canção solidária», dessas de que tanto os artistas gostam de se reunir para cantar em Portugal e que passam geralmente num dos intervalos da RTP à hora de jantar.

Oportunamente, o artigo intitulava-se “Vamos brincar à caridadezinha?”, e aí sintetizava o que há nele de importante: a denúncia desse conflito tão ocidental que se consubstancia na oposição entre o nosso desejo de ajudar (ou, ao menos, o reconhecimento de que essa é a atitude correcta) quem se encontra do outro lado do equador — geográfica ou socialmente — e a falta de vontade de deixar, ainda que momentaneamente, o conforto do sofá ou da noite à lareira.

Arranjámos, então, um compromisso, um «Good Coffee Karma», como lhe chama o brilhante Slavoj Žižek falando do Starbucks. Diz ele que incorporámos no nosso consumismo a ética não-consumista que acreditamos moralmente correcta. É assim que, no Starbucks, nos sentimos felizes e bem connosco próprios ao saber que estamos a apoiar uma política de «mercado justo»; nós, que até compramos o café mais caro para assim ajudar os produtores de café dos países sub-desenvolvidos, ou as suas comunidades locais. A Ben&Jerry’s faz isso igualmente bem.

Ora, é isso, para o filósofo esloveno, o Capitalismo Cultural; citando livremente: «A compra da redenção por sermos apenas consumistas» ou «mais do que comprar uma chávena de café… ao mesmo tempo cumprimos uma série de deveres éticos».

É também assim que organizações como a Avaaz.org (à qual por vezes também me junto) funcionam, e é assim que as coisas acontecem na mente dos artistas que se reúnem nos momentos como o que referi na abertura deste artigo. Se é verdade que actuam num nível diferente, o seu motivo e os seus objectivos são os mesmos: fazer-nos sentir eticamente responsáveis por ajudarmos alguém, ainda que sirvamos tal ajuda com luvas e com o mínimo contacto possível. Como a guilhotina permitia à justiça punir com a morte quase sem tocar no corpo do condenado, senão apenas num instante-relâmpago (para que a punição não se confundisse com a violência do próprio crime) (Foucault), este nosso capitalismo cultural  faz o mesmo, ainda que com o propósito inverso de salvar. Mas, diz Žižek, em última instância, «Charity degrades and demoralises!», pois ela é apenas um mero paliativo. O certo, mais ético do que o nosso aparentemente ético «good coffe karma», seria cuidar de criar uma sociedade onde a pobreza fosse impossível. É que à caridade de que ocasionalmente somos capazes, cuspimos no restante tempo com o modelo de sociedade de que somos parte.

É certo que as nossas acções de solidariedade à distância (caso Avaaz.org e as «canções solidárias») só podem funcionar numa sociedade de informação como a de hoje. É tendo isso em mente que agimos pela palavra, independentemente do conflito ou catástrofe, sobre qualquer parte do globo: a informação tornou-se o maior bem. Será, porém, de esperar (e ter em conta) que quem está abaixo do equador — novamente: do geográfico ou do social — ainda dê mais valor aos bens físicos de que carece. Por alguma razão, as expressões subsistem: «passar das palavras aos actos».

 

Hugo Picado de Almeida

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Media, Pensamentos, Terrorismo

A economia judicial no caso Breivik

Decorre por estes dias o julgamento do terrorista norueguês Anders Breivik.

Paulo Dentinho, jornalista da RTP, foi o único capaz de um belo momento de clarividência mediática sobre o assunto: «Todos nós [jornalistas] acabamos por participar daquela que é a estratégia de Anders Breivik.»

É justo que me digam que os jornalistas têm o dever de cobrir os acontecimentos, e que não lhes cabe a eles julgar os indivíduos. Ao que eu respondo: digam-lhes isso a eles, que geralmente são os primeiros a esquecê-lo. Não é, porém, isso que aqui importa.

Em Vigiar e Punir, Foucault assinalou que entre os séculos XV e XVIII a tortura judiciária funcionava simultaneamente como «um a[c]to de instrução e um elemento de punição.» Havia, portanto, uma punição ainda anterior ao julgamento: uma culpa de ser-se suspeito. Daqui decorre que se tomem atitudes profilácticas, e que se contrarie por isso a vontade do suspeito. Ainda hoje isso acontece, quando um arguido é sujeito a prisão preventiva, isolamento, suspensão de funções profissionais, suspensão de direitos (como o de tutela paternal ou administração de bens), etc. De forma análoga, no caso de Anders Breivik, cujo julgamento decorre à porta fechada, a contrariedade para o suspeito — porque, como notou Foucault, todo o exercício da lei sobre o criminoso tem algo de jogo, de duelo — seria o silêncio, um véu negro e opaco depositado sobre o caso. Breivik deixou um vídeo de propaganda, afirma-se escritor e ideólogo, líder de um movimento em rede, e mesmo impossibilitado de falar, encena diante das câmaras esse seu carácter: foi por isso que conscientemente entrou na sala do tribunal com o punho erguido.

A melhor medida de coacção para Breivik será, em conjunto com a prisão preventiva, o seu afastamento total das vozes e dos olhares mediáticos: o silenciamento de tudo quanto lhe diga respeito, o seu próprio isolamento. E contra mim falo.

 

Hugo Picado de Almeida

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Livros, Política, Terrorismo

O mundo do outro lado do espelho

A Visão noticia hoje que um comandante talibã, Mohammad Ashan, se apresentou numa esquadra de polícia com um cartaz que, como tantos espalhados pela região, anunciava uma recompensa de 100 dólares para quem o entregasse às autoridades. O terrorista, analfabeto, terá julgado que era procurado para que lhe pagassem a tal quantia e entregou-se assim à polícia afegã, que, incrédula, o prendeu de imediato.

Ocorreu-me, por isso, que Lewis Carrol pudesse ter razão no segundo volume das aventuras da pequena Alice, e que do outro lado do espelho pode haver mesmo um mundo que funciona ao contrário. Um mundo onde para chegar ao norte se deve caminhar para sul, um lugar onde as palavras se escrevem ao contrário e, por que não, um mundo onde os terroristas se entregam às autoridades, ou onde os governos defendem interesses privados, quando não estrangeiros… Esperem, quanto a esta última parte, essa é do lado de cá do espelho. Erro meu.

 

Hugo Picado de Almeida

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Cinema, Pensamentos

O Pulp Fiction aqui tão perto

É comum apontar-se no Pulp Fiction (Tarantino, 1994) a cena em que Vincent e Jules, assassinos profissionais, conversam sobre massagens aos pés enquanto se encaminham para casa dos seus próximos alvos. A cena é geralmente referida para mostrar a frieza das personagens e a sua indiferença perante a morte.

Ora, não me parece que seja exactamente disso que se trata. O caso aqui é que Vincent e Jules não falam propriamente de massagens aos pés. Aquilo de que falam, na realidade, é de uma massagem aos pés de uma mulher poder motivar o assassínio de alguém, no caso de existir um marido — eles falam do seu patrão, Marsellus Wallace — na equação.

Em boa verdade, a morte é a única coisa que liga todas as personagens do filme, e é ela que faz avançar a narrativa.

Assim, não é tanto a indiferença perante o fim que os marca, mas o fim ele próprio, que se insinua sobre toda a sua vida. A morte surge, assim, não como coisa banal pela habituação, mas banal pela sua medonha facilidade. O mesmo acontece, ironicamente, quando Vincent e Jules seguem com Marvin, seu informador, sentado no banco de trás do carro. Falam do milagre (para Jules; coincidência para Vincent) que foi nenhuma das balas que uma das suas vítimas disparou lhes ter acertado. Vincent argumenta que são coisas que acontecem, e relata um tiroteio que viu num documentário de televisão, onde um polícia esvaziava um carregador e não acertava um único tiro. Curiosamente, quando Vincent se vira para o banco de trás do carro para pedir a opinião a Marvin, basta o único tiro que dispara acidentalmente para atingir Marvin no rosto.

Estou convencido disso: Pulp Fiction não fala da indiferença ou habituação à morte. Fala, sim, da sua relação com a vida. Afinal, tanto Vincent (que deverá fazer companhia por uma noite à mulher do seu patrão) como Jules (que vê no milagre de ter escapado ileso um sinal para se reformar) passam o filme preocupados com a sua sobrevivência, e é isso mesmo que partilham com as demais personagens e, já agora, com os espectadores fora do ecrã.

Hugo Picado de Almeida

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