Deparei-me, noutro dia, com um artigo no blog A Devida Comédia sobre mais uma «canção solidária», dessas de que tanto os artistas gostam de se reunir para cantar em Portugal e que passam geralmente num dos intervalos da RTP à hora de jantar.
Oportunamente, o artigo intitulava-se “Vamos brincar à caridadezinha?”, e aí sintetizava o que há nele de importante: a denúncia desse conflito tão ocidental que se consubstancia na oposição entre o nosso desejo de ajudar (ou, ao menos, o reconhecimento de que essa é a atitude correcta) quem se encontra do outro lado do equador — geográfica ou socialmente — e a falta de vontade de deixar, ainda que momentaneamente, o conforto do sofá ou da noite à lareira.
Arranjámos, então, um compromisso, um «Good Coffee Karma», como lhe chama o brilhante Slavoj Žižek falando do Starbucks. Diz ele que incorporámos no nosso consumismo a ética não-consumista que acreditamos moralmente correcta. É assim que, no Starbucks, nos sentimos felizes e bem connosco próprios ao saber que estamos a apoiar uma política de «mercado justo»; nós, que até compramos o café mais caro para assim ajudar os produtores de café dos países sub-desenvolvidos, ou as suas comunidades locais. A Ben&Jerry’s faz isso igualmente bem.
Ora, é isso, para o filósofo esloveno, o Capitalismo Cultural; citando livremente: «A compra da redenção por sermos apenas consumistas» ou «mais do que comprar uma chávena de café… ao mesmo tempo cumprimos uma série de deveres éticos».
É também assim que organizações como a Avaaz.org (à qual por vezes também me junto) funcionam, e é assim que as coisas acontecem na mente dos artistas que se reúnem nos momentos como o que referi na abertura deste artigo. Se é verdade que actuam num nível diferente, o seu motivo e os seus objectivos são os mesmos: fazer-nos sentir eticamente responsáveis por ajudarmos alguém, ainda que sirvamos tal ajuda com luvas e com o mínimo contacto possível. Como a guilhotina permitia à justiça punir com a morte quase sem tocar no corpo do condenado, senão apenas num instante-relâmpago (para que a punição não se confundisse com a violência do próprio crime) (Foucault), este nosso capitalismo cultural faz o mesmo, ainda que com o propósito inverso de salvar. Mas, diz Žižek, em última instância, «Charity degrades and demoralises!», pois ela é apenas um mero paliativo. O certo, mais ético do que o nosso aparentemente ético «good coffe karma», seria cuidar de criar uma sociedade onde a pobreza fosse impossível. É que à caridade de que ocasionalmente somos capazes, cuspimos no restante tempo com o modelo de sociedade de que somos parte.
É certo que as nossas acções de solidariedade à distância (caso Avaaz.org e as «canções solidárias») só podem funcionar numa sociedade de informação como a de hoje. É tendo isso em mente que agimos pela palavra, independentemente do conflito ou catástrofe, sobre qualquer parte do globo: a informação tornou-se o maior bem. Será, porém, de esperar (e ter em conta) que quem está abaixo do equador — novamente: do geográfico ou do social — ainda dê mais valor aos bens físicos de que carece. Por alguma razão, as expressões subsistem: «passar das palavras aos actos».
Hugo Picado de Almeida