Textos

As palavras que não se escrevem

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Os momentos em que chego a sentir-me escritor são sobretudo aqueles em que apago. É quando risco e corto palavras que tenho consciência de estar a produzir algo que eventualmente valerá a pena ler-se e que possa, enfim, merecer um lugar entre os outros apagadores que vieram antes de mim.
Escrever é facílimo e a prova é que as livrarias estão repletas de livros que a finitude da vida recomenda não ler. Escrever é facílimo; o que custa é apagar. É reflectir e anular, retroceder, fazer tornar à caneta as ideias que se acabou de produzir. Seleccionar e rejeitar, assumir que nem todas as ideias que se tem têm na verdade préstimo algum, e aceitar que mesmo as frases que soam bem podem afinal não traduzir o suficiente para merecerem um lugar no mundo.
Tive esta ideia: uma biblioteca grande, enorme, se possível extensa como um palácio e estirada como uma catedral; a dimensão é fundamental para que se concretize o efeito; as paredes inteiramente forradas a estantes magras e altas como modelos; corredores a perder de vista com as paredes convergentes, vertiginosas, abraçando-se na ilusão da perspectiva, lá adiante. Esta poderia ser uma biblioteca como muitas das que há no mundo, não fora nela não se encontrar um único livro nem uma página impressa, um passe de autocarro caído na ranhura por entre duas tábuas do soalho ou sequer um recibo de restaurante amargando, solipsista, num cesto de papéis. Uma biblioteca inteira absolutamente vazia, cheia de ecos vagos e humidade, e somente isso. Porque são as palavras não escritas que fazem do escritor quem ele é. Como se as palavras publicadas num livro lá estivessem apenas para esconder que há outras que não estão. Um livro também é fotografia e pintura: escolha de enquadramento, ponto de vista, selecção e omissão na definição da moldura.

Hugo Picado de Almeida

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Poema inadmissível

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Leitores de um edital de recrutamento em Herald Sq., Nova Iorque. Bain News Service.

Revogue-se às pessoas o direito de andar na rua,
Taxe-se cada vislumbre do Sol,
Torne-se ilícito o olhar da Lua e
Cobre-se o oxigénio em função da caixa torácica de cada qual.
Legisle-se sobre o que pode ou não ser dito — se possível à palavra –,
Contabilize-se a quantidade de álcool ingerido,
A tinta que na escrita se gasta,
E submetam-se os cigarros à distribuição por senhas de racionamento.
Que as manifestações sejam silenciosas,
As greves de corpo presente
E os protestos somente entrada no dicionário.
Guilhotine-se o pescoço a todo o poema,
E transforme-se a música em braille
Para que o silêncio seja palpável.
Autue-se o desenhador que for demasiado longe.
Agrilhoe-se quem quiser que a liberdade seja real
E o escritor que não se fique por cópia de monge.
Evite-se que o riso seja alto e as carícias maiores,
Proíba-se aos casais o andar de mãos dadas
E faça-se do beijo coisa de ladrão.
Refunda-se o sexo para a clandestinidade
Ao erotismo prenda-se por cumplicidade
E arranje-se forma de cobrar por qualquer indício de desejo.
Molde-se o pensamento ao conciliábulo das notícias,
Que o Homem está na terra com as finanças no céu.
Faça-se pé de ladrão ao Ministro mas prenda-se o pedinte,
Arrole-se o cego como testemunha para salvar o pleito
E dê-se o peito, excisado, como credor da questão.
No final de tudo isto, se ainda não se o tiver também proibido,
Feche-se, sobre todos e sem grande alarido, a tampa calada do inevitável caixão.

O que é preciso

É que a liberdade não aceite que se lhe tracem linhas
De patins deslizantes e gizáveis ao gosto das forças contrárias.
Que os versos precedentes nunca sejam possíveis,
E que o futuro se salve de ser epitáfio.

Hugo Picado de Almeida

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O espaço defronte da arte

Henri Matisse, no seu estúdio em Nice, Agosto 1949. Foto de Robert Capa/Magnum Photos.

Henri Matisse, no seu estúdio em Nice, Agosto 1949. Foto de Robert Capa/Magnum Photos.

Um crítico de arte cujo nome perdi dizia — paráfrase minha — que a importância que atribuímos a uma obra está intimamente ligada às noções que temos da actividade humana subjacente à sua criação. Creio que terá razão.

O que geralmente me emociona ao ver um quadro ao vivo é saber que se partilha, naquele momento, o mesmo espaço físico que o seu autor viveu perante ele, e poder imaginá-lo ali, dançando com o pincel em frente à tela, parando para um cigarro, pensando nas contas por pagar e nos (des)amores por resolver. Porque um quadro nunca é apenas o que está na parede; a obra abarca ainda e sempre a área em seu redor, a porção do espaço que lhe fica sempre defronte. Só isso justifica a dimensão dos nossos museus, e talvez só isso nos faça ainda largar a galeria de imagens do Google para percorrer o mundo. Lembrei-me disto ao ver a história de Anastácio Gonçalves, antigo coleccionador português que faleceu na noite do mesmo dia em que finalmente visitou o Museu Hermitage, em São Petersburgo, ao fim de várias tentativas goradas. Afinal, talvez não deva surpreender ninguém, que não se possa resistir à convivência espacial com mestres como Le Pérugin e o Botticelli, o Steen e o de Hooch, o Poussin ou o Fragonard.

Hugo Picado de Almeida

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Rendez-vous chez Lipp

Brasserie Lipp, 1969, fotografia de Henri-Cartier Bresson/Magnum Photos.

Brasserie Lipp, 1969, fotografia de Henri-Cartier Bresson/Magnum Photos.

Há momentos em que ficamos fora de nós. Por exemplo, em face da fotografia ao lado, tanto eu como a velhota lendo o Le Figaro estamos obviamente noutro lugar além das nossas próprias fronteiras: mais especificamente, depositados nas pernas nuas e suaves da rapariga em primeiro plano, escapando àquela camisa-vestido que por pouco não a despe e que a cinge pelos ombros, mais acima, como se a abraçasse, namorando naquele café solarengo de uma Paris primaveril — há coisas que se percebem mesmo na distância do preto e branco.

Evidentemente, porém, a velha senhora não está tão bem impressionada quanto eu, o que se deverá, sem dúvida, ao facto de se estar na reputada esplanada da Brasserie Lipp, Boulevard Saint-Germain, lugar incontornável do 6ème onde se reúnem os escritores, os jornalistas e os políticos, onde os empregados vestem fato e não se vende Coca-Cola. Esse paraíso para muitos, como o Hemingway, onde o americano ia para cerveja gelada e pommes à l’huile quando havia dinheiro e não era preciso caçar pombos nos Jardins do Luxemburgo para sobreviver ao Inverno.

Foi talvez bom que Cartier-Bresson só tenha tirado esta fotografia oito anos após o suicídio de Hemingway, no distante Idaho. Temo bem que a moça que se adivinha de cabelos loiros — Belle, belle, belle, belle comme l’amour/Blonde, blonde, blonde, blonde comme le jour, como cantava o Vian — pudesse acabar conquistada pelo Hemingway nos seus anos de Paris, e conquanto isso pudesse ser bom para ele, correríamos talvez nós o risco de lhe ter menos um livro para ler. Da minha parte, apraz-me nunca ter encontrado nenhum escritor de nota nem uma mulher como esta de todas as vezes que passei em frente à Lipp. Teria sido mais difícil regressar.

Hugo Picado de Almeida

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Unterwegs

Rooms by the Sea, de Edward Hopper, 1951.

Rooms by the Sea, de Edward Hopper, 1951.

Porque há dias que acabam a meio
Pela ânsia de se fazerem manhã
E horas que passam vagas como corredores,
Torpes, tolhidas numa esperança vã
De que aos olhos se possa fechá-los para dar corda ao relógio.
De que se possa, enfim, dormir sem sono,
Da noite desembocando na cratera do dia
Numa esteira de sonhos despidos −
O entendimento no suor fresco à flor da pele nua
− Como que um nascimento de abandono.
Creio que gostava de que a noite não fosse despedida
Tanto quanto sonho que a manhã não se mostre despida
Por estar vazia a cama,
E o ar, das palavras que trocamos.
Que o Sol que varre o quarto possa não te encontrar aqui
Sinto-o como ébria desilusão na sobriedade do dia
Que se faz com a certeza contratual, formal, em letra de elegia
De que lá atrás o que foi se pode agora esfumar
Como se os cigarros nunca ardessem antes de ser cinza.
Como pode o Sol, afinal, em desequilíbrio, protagonizar essa acrobacia
De misturar a promessa, o palco, o real e a página vazia
Com a facilidade dos lençóis que se me enrodilham
Nas pernas, sem saber se se animam a matar-me por asfixia
Ou se é a paixão que os excita.

Porque há dias que acabam a meio
E que não é a manhã quem os anuncia.

Hugo Picado de Almeida

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O louco e o escritor

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Já foi sobejamente dito que a loucura é estatística, e que portanto se as quantidades de loucos e sãos fossem invertidas, os encarcerados seríamos nós. Não é, porém, claro que não sejam os loucos quem voluntariamente baixa ao hospital para se isolar de nós, assim como não é muito claro o que faz de um louco um louco. Entre o escritor e o louco, por exemplo, talvez não haja muito mais do que construções sociais. Em que difere a narrativa do primeiro das construções do segundo?

Fica a noção de que talvez os loucos pudessem não o ser, se ao menos tivessem talento para a pontuação, bons conhecimentos de semântica e sintaxe, e uma compreensão profunda da gramática.

Hugo Picado de Almeida

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Um russo em Paris

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Um dia aconteceu-me encontrar em Paris, ali onde os Champs Élysées abandonam as lojas de marca para entrarem nos jardins que escondem o Petit e o Grand Palais, junto ao metro de Roosevelt, um russo com ar de guarda-costas da máfia. Andaria talvez a Organizatsiya às compras na Louis Vuitton ou na Cartier, e o indivíduo aproveitando o Setembro tranquilo em Paris para tomar algum sol numa indubitavelmente merecida folga sem armas nem olhares desses que obrigam à torção do pescoço. Tinha o ar gasto e a pele áspera de quem pode ter passado pela metalurgia soviética ou pela cocaína — a que tiver vindo primeiro –, e de quem certamente assistiu ao desmoronar da União com uma arma no cinto e um sorriso matreiro nos lábios segurando-lhe um cigarro. O cabelo raro, eriçado e grisalho, e os olhos uralianos confiavam-lhe esse ar de quem monta uma Kalashnikov em dez segundos e de quem consegue fazer um homem falar por qualquer meio, se o dia assim lho exigir. Vestia um fato preto sobre uma camisola interior igual, começando a desbotar, como se ela própria curasse ainda a ressaca da noite anterior e as manchas sobre a gola pudessem ser de vodka. O sotaque carregava-lhe o inglês, o relógio grande, metálico no pulso impunha-se à vista pelo contraste, e a voz rouca identificava aquele volume opaco no bolso do casaco como um maço de tabaco.

Aproximou-se devagar, como só faz quem sabe o ofício que oculta, e sentou-se ao meu lado num banco sob as árvores, tentando adivinhar a minha nacionalidade. Depois do pequeno “Quem é Quem” quis saber o que achava eu de Paris, para de imediato alvitrar que Paris, Londres e Amesterdão eram bonitas, sim, mas que lhe mereciam uma mão trémula, denotando moderação no prazer que ali sentia. Nova Iorque, isso sim!, era para ele a razão de lhe brilharem os olhos azuis. “Grandes festas! Mulheres bonitas e a noite!”, exclamações ditas com o olhar glacial subitamente tornado quente e as papilas gustativas adivinhando-se num mar de saliva ansiosa, procurando um aceno cúmplice.

Breve como foi, toda a cena pareceu demasiado cinematográfica, como se plano clandestinamente inserido no filme; cena impossível, no fundo, como impossível também o facto de se poder estar em Paris, num dia de sol ameno como aquele, bom para os longos passeios sob o ar leve da cidade, ambicionando estar noutro sítio qualquer.

Hugo Picado de Almeida

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Recear em verso

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Talvez ler poesia devesse ser proibido. Talvez se pudesse apenas escutá-la da boca do seu autor. É certo que é o leitor que termina sempre de escrever um texto, mas se na prosa se corre o risco de se ser compreendido de forma inesperada, na poesia o meu receio é o de nem chegar a ser lido da maneira desejada, com as devidas respirações, encadeamentos, saltos e suspensões.

Parece-me isso, na poesia, mais gravoso, quanto mais não seja porque ela pode conquistar uma mulher, enquanto que a prosa talvez se digne apenas a entretê-la.

Hugo Picado de Almeida

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«The obsessive fear of the Americans is that the lights go out.», Baudrillard

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Ontem percebi que nos EUA não há “minutos” de silêncio, mas apenas “momentos”. Não mais de dez segundos de suspensão. Porque nem a morte nem a memória poderão sobrepor-se à vida de quem não tem história, só publicidade. No SuperBowl, se há quinze ou trinta segundos que vão interromper a transmissão, serão os do McDonalds, da Chevrolet ou da Coca-Cola. Ninguém perdoaria mais do que isso; ninguém suportaria mais do que isso, mesmo tratando-se da homenagem a alguém. Talvez nem os mortos o permitissem e regressassem, coléricos, se por eles se esperassem sessenta segundos completos. Nos EUA, só a publicidade pode interromper a narrativa aos vivos — e interrompe de facto: as séries, os jogos, uma viagem de táxi, os passeios na rua, as fachadas de alvenaria dos edifícios. A verdadeira promessa já não está nos super-heróis de Hollywood, mas nos ecrãs da publicidade. A partir de agora, ela é o verdadeiro cânone, o maior filme de heróis, a grande narrativa do amor e do sucesso.

Não foi ingénua a Chevrolet, ao ocupar um dos intervalos com um focus group onde as mulheres unanimemente preferem, a um indivíduo ao lado de um “truck” da marca, o mesmo indivíduo ao lado de um Toyota Corolla descaracterizado.

Hugo Picado de Almeida

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