Os momentos em que chego a sentir-me escritor são sobretudo aqueles em que apago. É quando risco e corto palavras que tenho consciência de estar a produzir algo que eventualmente valerá a pena ler-se e que possa, enfim, merecer um lugar entre os outros apagadores que vieram antes de mim.
Escrever é facílimo e a prova é que as livrarias estão repletas de livros que a finitude da vida recomenda não ler. Escrever é facílimo; o que custa é apagar. É reflectir e anular, retroceder, fazer tornar à caneta as ideias que se acabou de produzir. Seleccionar e rejeitar, assumir que nem todas as ideias que se tem têm na verdade préstimo algum, e aceitar que mesmo as frases que soam bem podem afinal não traduzir o suficiente para merecerem um lugar no mundo.
Tive esta ideia: uma biblioteca grande, enorme, se possível extensa como um palácio e estirada como uma catedral; a dimensão é fundamental para que se concretize o efeito; as paredes inteiramente forradas a estantes magras e altas como modelos; corredores a perder de vista com as paredes convergentes, vertiginosas, abraçando-se na ilusão da perspectiva, lá adiante. Esta poderia ser uma biblioteca como muitas das que há no mundo, não fora nela não se encontrar um único livro nem uma página impressa, um passe de autocarro caído na ranhura por entre duas tábuas do soalho ou sequer um recibo de restaurante amargando, solipsista, num cesto de papéis. Uma biblioteca inteira absolutamente vazia, cheia de ecos vagos e humidade, e somente isso. Porque são as palavras não escritas que fazem do escritor quem ele é. Como se as palavras publicadas num livro lá estivessem apenas para esconder que há outras que não estão. Um livro também é fotografia e pintura: escolha de enquadramento, ponto de vista, selecção e omissão na definição da moldura.
Hugo Picado de Almeida