Ouvi dizer que os irlandeses, nos tempos em que habitualmente os filmes os retratam, baptizavam os bebés sem lhes mergulhar o braço direito, para que o braço permanecesse pagão, capaz de uma boa luta.
De alguma forma, foi nisso que hoje apostámos os nossos olhos, alugando-os, como dizia McLuhan. O exercício de ver televisão é o exercício de ser depositado no mundo em guerra — os filmes têm bolinha vermelha e direito a cenas censuradas; o telejornal não –, os videojogos imitam o discurso do telejornal, discurso que este vai buscar aos filmes. E para que o ciclo seja completo e para que tudo seja mais belo, a guerra passou a confundir-se com os videojogos. É essa a guerra dos drones, a guerra à frente de um ecrã do computador, de joystick na mão e café sobre a mesa, a guerra onde se chega de carro e se pára para um almoço na cantina da CIA.
Há alguns dias, lia-se assim numa notícia do Público: «Na sua investigação sobre o comportamento dos homens que guiam os drones, P. W. Singer falou com um “jovem piloto” que participou na guerra no Iraque sem nunca ter saído do estado norte-americano do Nevada. “Estamos na guerra durante 12 horas. Disparamos armas contra alvos, damos instruções para matar combatentes inimigos. Depois entramos no carro e vamos para casa. Vinte minutos depois, estamos sentados à mesa do jantar, a falar com os filhos sobre os trabalhos de casa deles.”
Outro piloto de drones comparou o seu trabalho a um jogo de computador. É uma nova realidade nos cenários de guerra: o distanciamento cada vez maior entre quem dispara e quem morre. E, por vezes, a “guerra YouTube” pode transformar-se mesmo em momentos de entretenimento, como relata P. W. Singer: “Recebi um email com um vídeo de um ataque com um Predator a eliminar um alvo inimigo. O míssil atinge o alvo e vêem-se corpos despedaçados a voar pelos ares. Vinha acompanhado de uma música. O título da música é Fly, dos Sugar Ray.»
Por tudo isto, falta agora e apenas que as vítimas, do outro lado do ecrã, se tornem também virtuais. A alucinação da guerra pelo ecrã, ponto alto da cinematização do mundo e da ecranização da vida, abre, assim, espaço para uma saída inusitada, uma solução onde menos se suporia possível: afinal, não poderá “o distanciamento cada vez maior entre quem dispara e quem morre” chegar ao ponto de abolir a própria guerra?
É possível que sim, mas enquanto isso não acontecer, eu não deixo de pensar que gostava mais dos irlandeses, de punho fechado, à zaragata num pub. Fica ao menos a sensação de que éramos, aí, mais humanos.
Hugo Picado de Almeida