Do caderno, Textos

Finanças 101

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− Desculpe, o senhor planeia explodir-se?
− Como? – perguntou Jacques, surpreendido.
− O «como» é a segunda pergunta a fazer. Há muitas formas. O que lhe pergunto é se está a pensar fazer-se explodir. Está?
− Explodir-me?
− Rebentar, pulverizar-se, ir pelos ares. Há outros sinónimos capazes do mesmo efeito.
− De modo nenhum!
− Perguntei apenas porque me pareceu tão concentrado. Mas bom, então não se importa que eu… Não está a compreender?
− Que você… Que você, portanto, se faça explodir?
− Sim, precisamente. – fez uma pausa, mirando Jacques com um esgar pouco convencido – É capaz de querer afastar-se um pouco mais. Já vi que o assunto não o seduz.
− É muito amável. – verificou, desconcertado – Mas vai explodir-se assim, sem mais, aqui no meio do passeio?
− Não, aqui não. Ali do outro lado da estrada. Quero ver se consigo rebentar o banco. Devo-lhes dinheiro, sabe? E cheguei à conclusão que explodir-lhes o edifício é a minha melhor opção.
− Não estou bem a ver como é que isso o ajuda… − Jacques espantava-se por se encontrar tão calmo.
− Nada mais elementar. O banco pode existir sem a dívida, mas a dívida não é nada sem o banco. Vai daí, pensei que, se não me consigo livrar da dívida, posso sempre livrar-me do banco. É o problema dos tangíveis. Não resistem a uma boa bomba.
Entretendo-se a dar piparotes numa pedra solta com a ponta do sapato, Jacques sentia-se preencher por uma inquietação que se expressava sob a forma de um ardor espesso na região do peito. «Estou a solidificar.», atreveu-se a pensar. «E é de dentro para fora.» Como se se deixasse invadir por uma tensão que não existia fora de si, mas que só agora se manifestava em querer no espaço do corpo, no terreno delimitado pelas fronteiras da pele, brotando, germinando, primeiro caule, depois folha, flor e fruto, impelindo o corpo para a frente, empurrando de dentro a derme que se revelava incapaz de furar. E a pressão, sem ponto de escape, move.

Hugo Picado de Almeida

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Textos

Os blogs têm sete vidas

Não há motivos sólidos para que este blog se tenha tornado num desses vazios oblíquos da internet, lugar de ninguém onde os textos, sozinhos e não visitados, vão amargando à força da solidão que os impede de se lerem a si mesmos, que nisso a literatura vale-se de pouco.Sobretudo porque era objectivo deste blog ser um local para textos aquém-livros, onde pudesse ir expondo o que me preenche as páginas dos cadernos mais amiúde. De ora em diante, assim se tentará, porque, com tudo o que de imbecil isso talvez tenha, desgosta-me ouvir o vento assobiar por entre as janelas abertas destas páginas, e ver a humidade ir ganhando espaço às letras afixadas nas paredes.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, História, Política

À memória de Sophie Scholl

[à memória de Sophie Scholl, membro do grupo de resistência alemã ao regime Nazi, Rosa Branca, que em Fevereiro de 1943 foi presa enquanto distribuía panfletos contra Hitler na Universidade de Munique. Foi condenada à morte e guilhotinada pela Gestapo, juntamente com o seu irmão, Hans Scholl, e Christian Probst. No total, mais de 50 membros do grupo acabariam por ser executados.]

Já aqui o disse vezes sobejas para que da ideia o leitor se encontre já enfastiado e melindrado, mas o fastio de uns nada poder contra as resoluções dos outros.

Mais a mais, quando falamos de vida e morte, liberdade e opressão, justiça e injustiça; tudo sinónimos, como facilmente se compreender. Tenho pela palavra um amor talvez pouco recomendável, como pouco recomendável talvez seja sempre a paixão por porções de tinta impressa num qualquer suporte. Mas peço ao leitor que me perdoe o excesso e a ousadia, pois creio que a palavra o merece. Invisível mas indelével, visível mas total, dela se faz o Mundo, o Homem, a sua Vida e a sua História. Fora dela, da palavra e da linguagem, o Homem deixa de ser Homem, o Mundo torna-se plano ou até informe, e a Vida, presente intemporal e inesgotável, aniquila a História e os Oráculos. Tudo de uma penada.

E se amo a palavra, estou igualmente no direito de a odiar quando ela a si mesma se atraiçoa. E esse ódio senti-o há dias, no gosto amargo da revolta, ao ver Sophie Scholl — Die Letzten Tage, filme alemão que versa — curiosidade linguísticas — sobre a resistência ao regime nazi dentro da própria Alemanha; realidade que poucas vezes nos é dada a conhecer, quiçá por maniqueismos da pedagogia simplificada, amiúde ela própria catalisadora do preconceito generalizado.

Como seria de esperar num tribunal ao serviço de um regime ditatorial, a retórica torna-se no louco e bizarro exercício da sua ausência. E no “como se” da sua presença se cometem os mais nefandos malabarismos judiciais e linguísticos; não há sentença sem a palavra nem palavra que não seja sentença. E o vício da palavra é esse, o de não permitir distinguir, à superfície, e quiçá mesmo debaixo dela, o bom do mau, o certo do errado. É verade que a violência também não, mas ela é ao menos a alternativa. Se a palavra falha, há sempre a violência. Pode ser ignóbil, pode ser cobarde, pode ser desprezível, condenável ou até desonrosa, mas é escapatória. Tem um poder feio, mas poder que a palavra não tem. Digo-o com amargura. Porque a palavra do cessar-fogo é sempre passo atrás, regresso, pausa e recomeço. Talvez seja essa a ordem natural das coisas, mas nem por isso me desgostas menos que tenha de ser a força, a mão e a arma a reabilitar a palavra.

Sei bem o quanto gostaria de ter visto a palavra salvar Sophie Scholl, que se lhe manteve fiel até ao fim, mas cedo percebi que, se alguma hipótese restava à jovem alemã, era um Panzer de 44,8 toneladas irrompendo pela sala do tribunal, disparando explosivos de calibre 7,5.

Hugo Picado de Almeida

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