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Forjar um Vermeer

Fiquei hoje a conhecer a curiosa história de Han Van Meegeren, artista holandês famoso pelas suas reproduções de Vermeer e de De Hooch, entre outros, com as quais conseguiu cerca de 30 milhões de dólares no século XX.

A fantástica narrativa de Van Meegeren atinge o seu zénite em 1945, com a venda de um Vermeer ao número dois de Hitler, Hermann Göring, algo que ao holandês granjearia mais de 6 milhões de dólares e um julgamento por traição à pátria, após a guerra. Durante o julgamento, Van Meegeren viu-se então forçado a confessar que nunca vendera arte holandesa aos ocupadores nazis, e sim que com a própria mão a forjara — à época, as suas reproduções figuravam já em galerias e colecções privadas como obras autênticas dos mestres holandeses, altamente consideradas por críticos de arte.

“Christ and the Adultress”, quadro vendido a Göring como um Vermeer. (Van Meegeren, 1941-42)

O biógrafo do Marechal do Reich contaria mais tarde que, ao saber tratar-se de uma falsificação, Göring reagira como se pela primeira vez tivesse descoberto a maldade no mundo», o que não deixa de espantar tratando-se de um líder nazi. Para mim, esta será, de hoje em diante, a prova do poder da arte sobre os Homens. Göring suicidar-se-ia poucos dias depois, mais provavelmente para se furtar ao enforcamento a que fora condenado em Nuremberga, marcado para o dia seguinte, do que pelo desgosto de saber ter comprado um Vermeer que afinal nunca o fora. Mas creio que as maravilhas da história vivam destas curiosas conjugações.

Elas produzem sentido, é delas que se faz a narrativa, é por elas que o texto não é plano mas cordilheira. Assim como o facto de Van Meegeren se ter, ao invés de colaborador nazi, tornado um herói nacional holandês: afinal, foi graças às suas muitas falsificações, compradas com conhecimento de causa por vários coleccionadores holandeses, que parte significativa das obras dos “grandes mestres” que foram parar a mãos nazis eram, afinal, grandes obras de Van Meegeren.

Hugo Picado de Almeida

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Holes and deserts

Joe Pesci e Robert DeNiro em Casino, de Martin Scorsese (1995).

Joe Pesci e Robert DeNiro em Casino, de Martin Scorsese (EUA, 1995).

«If you have to dig to find yourself, you’re probably dead.»

A frase é de Jarod Kintz, mas poderia tão bem ser de Nicky Santoro, o mafioso brilhantemente incorporado por Joe Pesci no magistral filme de Scorsese, o Casino. Talvez na Las Vegas de Casino fosse necessário deslocar o pronome pessoal, de tal modo que se lesse «If they have to dig to find yourself, you’re probably dead.» Mas a frase tornar-se-ia, aí, quase policial, forense, mera descrição da realidade tal como ela é. Sobretudo, tal como ela era no deserto do Nevada, circa 1970.

Mas talvez o Casino nos dê, afinal, toda a resposta de que precisamos. Não me consta que nos meandros da máfia nos EUA espaço houvesse para a dúvida ou a reflexão demorada, e certamente não para o debate, a psicanálise ou qualquer outro modo de auscultar a consciência, já que aqui estamos. Nicky e Ace são homens de acção, de impulso e reacção, de momento e aposta, de salto e risco, de uma talvez muito peculiar, adulterada e delirante joie de vivre, mas joie de vivre ainda assim. Talvez o segredo seja esse.

Afinal, tudo para eles era fácil, e a solução à vista de todos. As palavras de Nicky são óbvias: «You fuck me up over there, I’ll stick you in a hole in the fuckin’ desert.»

Hugo Picado de Almeida

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Mulher-espelho

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Em Mauvais Sang, de Leos Carax, há um momento em que Alex confessa a Anna que prefere ver as mulheres através de espelhos, para assim levar a sua imagem na memória. Talvez nós, homens, vejamos afinal as mulheres sempre como se através de espelhos, e é por isso que as trazemos sempre em nós com a força das miragens e do desejo. Um corpo pode afastar-se, pode distar de nós mais ou menos tempo. Uma imagem nunca desaparece.

Hugo Picado de Almeida

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L’Écume des Jours

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Não sei se Boris Vian o quis fazer, mas, tendo querido ou não, em A Espuma dos Dias Vian escreveu uma das mais belas histórias de amor de sempre. A de Colin e Chloé, mas também a de Alise e Chick, de algum modo. Uma história de amor talvez desajeitado, embora se possa defender que o amor sempre o é. Sem regras, sem porquês. Sem ciência, precisamente a que se interpôs entre Colin e Chloé sob a forma de um nenúfar alojado num pulmão e de um médico mais apoquentado pela beleza da femme de Colin do que pelas suas síncopes cardíacas desencadeadas pela planta em floração.

Chloé e Colin, Chick e Alise são talvez vítimas dos comuns que podem vitimar as relações — a saúde mata Chloé, o dinheiro destrói Chick –, mesmo na sua vida e no seu mundo muito pouco comuns, ou não tivessem todos os quatro saído do punho de Boris Vian. São poucos os filmes que fazem jus aos livros em que se baseiam, mas Michel Gondry conseguiu a proeza. Do mundo airoso, feito de arco-íris e cores saturadas, da voz doce de Chloé trauteando «Colin, Colin, Colin» e de sensuais danças desafiando a física vamos mergulhando numa tela desbotada, na casa progressivamente mais escura e apertada de Colin, acompanhando a sua crescente anorexia bancária e sentimental. O céu dá lugar ao pó, a tosse de Chloé varre os planos, o frio apodera-se de tudo.

O amor subsiste, porém, contra todos os males, não por acaso sob a forma dos milhares de ramos de flores com que Colin abafa Chloé, na ânsia de fazer medo ao nenúfar que lhe abarca e rouba o peito. Colin vende o seu pianocktail, dispõe-se aos trabalhos mais negros para salvar Chloé, despede-se de tudo quanto era a sua vida. Quando Chloé morre, nada mais resta, e tudo se precipita para o final. A cor esvai-se por fim, Alise perde-se, Chick é morto, e a música de Duke Ellington não soa mais.

Nem poderia, se Colin é afinal uma personagem de Vian, o autor francês que dizia que, na vida, só o amor com mulheres bonitas e a música de Duke Ellington mereciam ser preservadas. Tudo o resto, dizia ainda Vian, deveria morrer, porque tudo o resto é feio.

Hugo Picado de Almeida

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La Meglio Gioventù

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La Meglio Gioventù
pode bem arriscar-se a ser um dos melhores filmes que vi até hoje. Honesto, sem manhas nem esteróides, retrato perfeito do que pode ser a vida, rica por si mesma, nos encontros e desencontros, nas rotinas e surpresas, nas indecisões e nas certezas, no tempo que passa e nas marés que ele traz, nas gentes que arrasta e que acaba a depositar-nos nos braços.

Seis horas de vida que a contam toda, que valem por anos sem que fique na boca o gosto a vinho a martelo, martelado à pressa para que fora do ecrã se retome a nossa. Seis horas de filme que servem de tributo, que nos retratam a todos com a simplicidade de entre nós e as gentes dentro da tela não haver diferenças. Perante La Meglio Gioventù, não é já de cinema que se trata, mas de uma casa de espelhos que não nos quer deformar. Uma casa, simplesmente, onde a profusão de reflexos permite tão honestamente caracterizar-nos as múltiplas facetas em que nos imprimimos.

Do filme se poderia dizer que é triste, depressivo, se somadas as suas partes narrativas, mas seria de ameno espectador dizê-lo. Em boa verdade, a vida da família Carati e dos que os acompanham é preenchida de histórias e amigos e diferentes coordenadas geográficas, polvilhada de sonoras gargalhadas e vozes altas e apaixonados beijos, como aqueles que marcam a última verdadeira cena do filme, entre Nicola e Mirella. Não será, talvez, uma vida melhor ou pior do que a de qualquer um de nós, e isso transparece no guião, que não (a)tenta contra ela, e também nos actores, que durante todo o filme nem chegam a parecer sê-lo, com a maior das facilidades.

O final, estando longe de ser óbvio, assim como na longínqua Noruega, no canto oposto da Europa ao berço dos Carati, é muito necessário: Penso a te, che mi hai sempre detto che tutto è bello…mi sa che avevi ragione! Tutto è veramente bello!

Hugo Picado de Almeida

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Elogio aos cães

«Quem não sonha não deseja.», acreditava o senhor Ortabecassuz, talvez pleno de razão. Até os cães sonham que correm, porque é isso que gostam de fazer. E correm porque procuram algo, porque querem alguma coisa, e sabem muito bem o que ela é. O desejo é o movimento. Se desejas, corre! Não há coisa mais bonita do que um cão que sonha que corre. É desejar o desejo. É desejar duas vezes.

Hugo Picado de Almeida

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Amsterdam 123

Um destes dias, o shuffle do iTunes, afinal atento aos diferentes níveis de intertextualidade musical, serviu-me em sucessão a Amsterdam dos Imagine Dragons e a Amsterdam do incomparável Brel.

Depois de um automático aceno de cabeça, reconhecendo a curiosidade, calculei então que, muito possivelmente, a Amsterdam do belga e a Amsterdam dos norte-americanos serão a mesma. Na cidade imaginada pela banda americana, os dias não são auspiciosos: as desculpas sucedem-se, as dúvidas também, e a sensação que fica é que lá ao longe, depois da música terminar, não é provável que as coisas resultem bem para o protagonista. Enfim, muito à semelhança do que se passará no porto magistralmente narrado por Jacques Brel, nas suas cores saturadas como as gentes nele e nos cheiros e atmosfera densa de fumo e nuvens, abafada na calmaria dos que mesmo desfraldados ao vento a pouco podem aspirar, que ali estão presos como o lodo ao chão do cais. Mesmo no fulgor narrativo do Brel, na emoção visceralmente dedicada a cada palavra, a bruma não abandona o porto, os seus recantos continuam repletos de cheiros tristes e gente condenada, de uma forma ou de outra, a sobreviver, a permanecer como personagem-tipo na luz amarelenta que não alumia nada; que, como eles, é apenas presença.

Resta-me agora ir à verdadeira Amsterdam, a dos mapas, e descobrir se as três poderão afinal ser uma e a mesma.

Hugo Picado de Almeida

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A Paris despida de Atget

Eugène Atget, Rue des Ursins, 1900. BNF

Eugène Atget, Rue des Ursins, Paris, 1900. BNF


Esta noite sonhei que passeava com Atget pela madrugada parisiense, enevoada e incapaz de se decidir a irromper em dia. As ruas desertas emprestavam à cidade um ar de cenário, onde Atget ia montando a sua pesada máquina, que lhe feria o ombro ao andar, e tentando diversos planos. Observava-o com sofreguidão, mordendo o lábio excitado, enquanto vagarosamente dispunha o tripé e esperava que algum transeunte, ainda sonâmbulo, lhe desimpedisse o plano.

– Preferia que as cidades não tivessem ninguém. – confidenciou-me, como se acendesse o cigarro que não tinha.

– Uma cidade, mesmo se vazia, tem sempre o rosto de quem a fez. – atrevi-me a responder.

Ele abafou um riso troçante antes de tornar a falar:

– Isso é tudo muito bonito, mas a cidade pode sobreviver muito bem sem gente. O contrário não.

Supus que ele tivesse uma boa dose de razão, e entretive-me a olhar para a curiosa cena à nossa frente. A carroça impávida, o carrinho-de-mão como se não pudesse pertencer senão ali, e os diversos cartazes ainda falando, pouca diferença lhes fazendo se alguém havia para os ler ou não. Após reflectir por momentos, em silêncio, decidi falar-lhe do trabalho que um dia escrevi sobre ele na faculdade, que arrisquei intitular «A Paris despida de Atget – Entre o Realismo Forense e o Surrealismo Involuntário». Creio que muito me teria agradado ter a opinião dele sobre o assunto, mas o despertador ceifou-me a possibilidade de dele obter resposta. Ainda estremunhado, ocorreu-me que talvez pudesse a cidade sobreviver bem sem despertador.

Hugo Picado de Almeida

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