Política

Significados

O Governo decidiu-se pelo fim dos feriados do 5 de Outubro e do 1 de Dezembro, numa medida que é pura fantochada e que se inscreve na lógica ignóbil de que “andámos a viver todos acima das possibilidades”. Desenganem-se aqueles que pensam que são 2 dias de trabalho mais, ou mesmos mais 30 minutos todos os dias, que vão fazer alguma coisa à crise. Bom, talvez lhe façam cócegas, mas sabemos que as cócegas só provocam o riso.

Porém, o eliminar destes dois feriados não é puramente uma parvoíce governativa; é também um importante acontecimento semiótico.

Reparemos naquilo que é eliminado: o feriado que celebra a implantação da República e o feriado que celebra a restauração da Independência. Faz sentido, somos obrigados a notar: a República já não é verdadeiramente nada – referi num dos últimos posts que a República já é meramente a encenação vazia da República que um dia tentou sê-lo efectivamente; e a Independência já não faz sentido, a partir do momento em que um eixo franco-alemão decidiu governar a Europa à revelia de todas as outras instituições mais ou menos moldadas para o fazer (ainda que não o fizessem muito bem, mas isso não interessa agora), ou de um trio de estrangeiros sem qualquer legitimidade, e enviado, qual piquete de emergência, para nos salvar – resta saber de quem ao certo.

Nas guerras surgidas na Europa, a Alemanha sempre teve como grande opositor – e opositor esse que sempre saiu vencedor – a França. Estão então lançadas as bases, com esta união, para que a Alemanha possa definitivamente varrer a Europa, e melhor: já sem que para isso precise de uma guerra.

Hugo Picado de Almeida

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Livros

Estive à conversa com o jornal “desacordo”

«Hugo Almeida

Tem 23 anos de idade, acabados de fazer, e encontra-se a tirar o mestrado em Ciências da Comunicação, variante em marketing e publicidade, na Universidade Católica Portuguesa. A somar à experiência académica referida está uma vida profissional ainda curta. Mas não é do Hugo, estudante ou estagiário, de que falamos, mas sim do Hugo escritor, que lançou, há poucas semanas, o seu primeiro livro e já com o cunho da Chiado Editora. O mesmo conta a história de um escritor que, certo dia, se encontra com as personagens por si criadas. “O Cortejo”, nome sujeito a interpretações várias, aborda este relacionamento atípico e discreto, debruçando-se, igualmente,  na génese das relações humanas e no choque entre personalidades díspares. Inspirado num texto escrito por si próprio há cerca de três anos, depressa se tornou num trabalho completo quando resolveu dedicar-lhe todo o tempo livre disponível. Agora, na primeira edição e com 500 exemplares, é um já motivo de leitura (à venda na Bertrand, via online, e em algumas livrarias independentes).»

Por Ana Marques, em Inovar em português: quatro casos de sucesso
Artigo completo aqui http://www.desacordo.net/inovar-em-portugues/2012/01/

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Política

A Arena da República

Da mesma forma que a Assembleia da República não é tanto uma Assembleia mas mais uma Arena, a República a que essa Assembleia pertence também não é já muito uma República [res publica], mas sobretudo um sítio de má rês.

Não embarco na conversa de que todos os políticos são iguais; nunca achei que o fossem. O que acontece é que são facilmente engolidos pelo sistema – aí tornados virtualmente homogéneos -, porque só reproduzindo os seus agentes pode o sistema auto-preservar-se.
Se um partido se escusa a entrar na política-espectáculo da argumentação estéril, das reacções e das reacções de segunda ordem, é por todos assumido que quem falou tem razão, ou que quem não falou se colocou à margem da questão. A isto não são alheios os media, que só conseguem entender as acções em função de uma lógica de debate, de confronto, de batalha, uma sede de maniqueísmos que lhes facilitam o trabalho e, certamente, o entendimento do público. Pouco importa se a realidade é mais complexa, ou outra; ela deixa de existir ao entrar no discurso mediático.

Se é claro por que razão a Assembleia é sobretudo uma Arena onde os deputados exercitam os seus dotes oratórios e argumentativos, por que razão não estamos já tanto numa República?

A nossa República, como a nossa Democracia, já não são tão representativas quanto seria de esperar; hoje, são essencialmente de representação, de mimetização de antagonismos, e é isso que não podemos deixar de sentir ao assistir a uma sessão no canal Parlamento. Não é que os políticos não queiram resolver os problemas; a questão é que facilmente se perdem nos excessos argumentativos de quem passa demasiadas horas colocado num cenário que incita à discussão. Sintomático disso é que as verdadeiras decisões sejam tomadas nas várias sedes parlamentares, nas comissões e grupos de trabalho, nos «passos perdidos» da Assembleia da República – e, inevitavelmente, na Maçonaria e outras sociedades secretas. No plenário tem apenas lugar o espectáculo da política, concurso televisivo destinado a entreter a audiência à hora de jantar, encenação caricatural da luta dos partidos.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

Energia e Suicídio

Em antigas culturas indígenas, o suicídio era muitas vezes alcançado pelo acto de se lançar ao mar e de nadar perpendicularmente à costa, para o mar alto, até que não restassem forças para voltar – o sacrifício do corpo pelo esgotamento da energia.

Hoje, é isso que se tornou intolerável, insuportável: o sacrifício da energia sem objectivo. Na nossa cultura (pós-)moderna, deixou de ser possível não ter um propósito, deixou de ser possível desperdiçar energia. É esse o triunfo da nossa ecologia, o de aproveitar tudo: apagar as luzes, poupar água, fazer exercício. Com que objectivo? O de ter mais luz, mais água, e de aumentar a capacidade de fazer mais exercício, mas não só.

Mesmo não fazer nada se tornou produto dessa lógica; converteu-se em procrastinação, apenas o adiar do trabalho mas!, gloriosa inversão, também momento útil ao bom desempenho do trabalho. O não fazer nada foi incorporado, apenas como mais uma etapa, na lógica da produção, e aí o despimos de todo o seu interesse.

É assim que o suicida de hoje já não se suicida verdadeiramente. Acaba com a vida, é certo, mas já não atenta contra mais nada; já não o deixam gastar nada porque talvez já nada seja seu para gastar, nem mesmo a sua própria energia. A única coisa que lhe resta é deixar de gastar seja o que for.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

Processos

É conhecida no mundo da teoria fotográfica uma espécie de anedota que se conta assim:
Uma amiga diz «Que bonito que é o teu filho!», ao que a mãe responde «Oh, isto não é nada. Havias de ver era a fotografia dele!» [1]

Quem estuda estas coisas detém-se habitualmente no carácter aurático das fotografias, na dimensão mágica e misteriosa para que remete quem ou o que nelas figura. Seria, muito provavelmente, isso que acontecia com a «fotografia dos mortos», estranha prática que esteve na moda durante várias décadas desde a invenção da fotografia, e que só sob essa luz seria certamente suportável.

Não sei ao certo por que vos falo disto hoje, mas é também este um processo legítimo, o de ir criando à medida que se avança; nem tudo tem de estar definido à partida. É o que acontece na fotografia, por exemplo. O seu resultado nunca é exactamente aquilo em que pensámos, ou aquilo que vimos ao espreitar pela máquina. Em toda a produção – a criativa, pelo menos (se é que há outra) -, há uma parcela reservada para o imprevisto, para a inspiração verdadeira, para a surpresa própria, para a criatividade do momento. Aliás, não é senão aí que reside o processo criativo, o processo construtivo dos objectos com valor artístico: nas surpresas últimas da sua criação, nas misteriosas ocorrências que o modelam, até porque, em boa verdade, não é senão isso que diferencia a arte de um qualquer cálculo matemático.

Eis-nos, então, aqui enquanto a prova desse argumento, dessa errância discursiva que acaba sempre por produzir algo, mais ou menos relevante. Mas, recuperando a anedota e em jeito de fecho: Haviam de ver era a ideia que eu tinha para este texto!

 

Hugo Picado de Almeida

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[1] Marshall McLuhan, Compreender os Meios de Comunicação – Extensões do Homem, Relógio d’Água (2008).

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Pensamentos, Política

A Maçonaria hoje

A Maçonaria teve um papel relevante em vários momentos da História, enquanto defensora do espírito iluminista e baluarte do conhecimento.

Foi uma sociedade secreta porque assim o tinha que ser, para cumprir os seus objectivos. Foi uma sociedade secreta porque a Igreja condenava os seus rituais e perseguia os seus membros. Foi uma sociedade secreta porque os fascismos a tentaram destruir e porque só nessa clandestinidade podia integrar a resistência.

Há apenas uma verdadeira razão para que as sociedades secretas sejam secretas: para evitar que o regime na qual estão contextualizadas as persiga. O Poder e as sociedades secretas sempre estiveram em campos opostos. Permanecendo secreta hoje em dia, a Maçonaria logra apenas em constituir-se como inimiga da democracia.

E quando um seu Grão-Mestre afirma que foi no seio da Maçonaria que conseguiu reunir tranquilamente com deputados de vários partidos para montar o Sistema Nacional de Saúde, isso só prova a fraca e volátil matéria de que é feita a democracia em Portugal – e, sobretudo, as pessoas dentro dela. Isto prova, certamente, que os partidos não estão interessados em defender os cidadãos que os elegeram, mas sim na sua manutenção no poder, na manutenção do seu estatuto e das suas personagens no guião pré-estabelecido que faz de uns Governo e de outros Oposição. Os políticos deixaram para a Maçonaria (e para outras sociedades secretas) o efectivo controlo da sociedade, e esta mantém-se secreta porque a sua acção é, então – e ela sabe-o – contrário às instituições livres de um Estado de Direito em que os cidadãos elegem quem toma decisões e em que as instituições públicas são transparentes e a sua acção legítima.

A Maçonaria deixou de fazer sentido, sobretudo enquanto sociedade secreta, quando deixou ter algo por que lutar. Perdeu os seus objectivos e referenciais; restava-lhe, por isso, qual exército de soldados sem inimigo, virar-se para o seu próprio rei e lutar com ele pelo poder.

Hugo Picado de Almeida

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Livros, Pensamentos, Política

O eterno retorno

Ontem, ao rever o filme Destruir depois de Ler, fixei-me sobretudo no título. Destruir depois de Ler…A fórmula «destruir depois de ler» exige uma forte crença na subvalorização da palavra – e, bem assim, uma confiança absoluta naquele que lê. É que a palavra, depois de dita (ouvida) e depois de escrita (lida) deixa o domínio de quem a enuncia, passando o seu sentido a ser feito pelo seu novo proprietário, ainda que mantenha a assinatura geralmente indelével do seu autor.

Ao pensar nisto lembrei-me da ideia de «eterno retorno», ideia original de Nietzsche com que Milan Kundera abre a sua A Insustentável Leveza do Ser. E se Kundera a usa para dar exemplo do novo significado que os eventos poderiam tomar por deixarem o simbólico e entrarem novamente no real, parece-me que é nas palavras que o eterno retorno já se concretiza plenamente, porque elas não deixam de soar.

Foi isso, por exemplo, que Passos Coelho experienciou ao colocar Catrogas e Cardonas na EDP. De imediato retornaram à corrente do real as palavras que proferiu na oposição: «Nós não queremos um Estado que manda na Administraçäo e ainda nomeia gestores de empresas privadas.»
(Abril de 2010)

Destruir depois de ler é um acto impossível.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, Pensamentos

O Acordo é, efectivamente, um Desacordo

Não sei se já vos disse, mas aqui me confesso: sou violentamente contra o Acordo Ortográfico.

Façam-me a gentileza de ter paciência e embarquem comigo num breve raciocínio:

Imaginem que um dia, sob pretexto de tornar os edifícios mais uniformes na sua estrutura, um qualquer regulamento obrigava a que todas as construções usassem o mesmo tipo de cimento: um cimento certamente livre de algumas impurezas, de alguns químicos, e supostamente mais fácil de aplicar, dito mais eficiente e aperfeiçoado; um cimento mais flexível que qualquer pedreiro soubesse usar, independentemente das técnicas particulares a que estava acostumado.

Imagine-se, agora, que, com o tempo, se viria a descobrir que, afinal, o tal cimento não só não era mais fácil de aplicar – porque este cimento não obedecia a nenhumas regras físicas em particular -, como acabava por rachar também em algumas situações, começando os prédios, que anteriormente se aguentavam em pé durante muitos anos, a colapsar poucos dias após a sua construção. É que este era um cimento que permitia uma construção de procedimentos facultativos; um cimento que, por ser mais fácil de manusear e sem obedecer a muito restritas regras físicas, cada pedreiro usava efectivamente como mandava a sua preferência ou o seu costume.

Não seria um cenário feliz. Ora, é isto que acontece com o Acordo Ortográfico.

Sob o pretexto de tornar uniforme o português das várias regiões do Mundo, o edifício da língua começa a desmoronar-se. Em tom de gozo, falamos de um DesAcordo Ortográfico, mas é verdadeiramente disso que se trata. Não sei se já leram o artigo do Diário da República em que se promulga o Acordo; eu já, e não há nele nada que garanta a uniformidade da língua. Porque, convenhamos, quando uma lei diz que há que observar o que acontece “invariavelmente” nas “pronúncias cultas da língua” para decidir se se mantêm ou não as sequências consonânticas – e outras situações -, isso não é já lei alguma. Se a maioria dos falantes não sabe as regras básicas da língua, quantos saberão se nas pronúncias cultas da língua os c e os p antes de outras consoantes se lêem ou não? Pior: o que prescreve o acordo em casos em que a pronúncia culta da língua profere tais sequências consonânticas mas em que o uso circula entre a prolação e o emudecimento, como acontece com aspe[c]to ou com rece[p]ção? O uso facultativo, triunfo encapotado de livre arbítrio de quem não tem resolução coerente para os problemas formais que criou, e que não se apercebe de que, assim, cria ainda outros tantos.

Uma língua é como a matemática; um sistema de regras, um código. E assim como na matemática não pode ser facultativo representar um 6 com a “perna para baixo” (9), também na língua o facultativo não pode existir, sob pena do sentido se esvair em sangue e de tornar, assim, a língua vazia, não mais do que sons que passam a ser uma nebulosa, não sendo muito certo o que querem os seus falantes dizer. É isso que acontece quando o Acordo torna também facultativo o uso de acento agudo no pretérito perfeito: amámos e amamos podem, assim, significar exactamente o mesmo. Presente e passado iguais; que triste fado para uma língua que se gaba de ser a única a ter uma palavra para saudade.

«Facultativamente» é, infelizmente, uma das palavras mais comuns neste Acordo, e isso é algo de assinalar. Supõe-se que, num acordo, haja acordo entre as partes: é esse o princípio base que sustenta a sua capacidade uniformizadora, a sua harmonia, o seu poder e o seu objectivo. Mas o Acordo, que os nossos governantes dizem necessário para fazer face à necessidade de ter uma língua uniforme para o ensino do português no Mundo e para o afirmar como língua de trabalho em instituições internacionais, falha precisamente aí. Na tentativa de promover uma língua uniforme, o Acordo logra até produzir o dúbio artificial e instaura oficialmente a grafia dupla.

 

Hugo Picado de Almeida

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Ficções

O estranho caso de…

Apareceu-me, noutro dia, um homem com uma maleita daquelas que não vêm nos compêndios. Era um paciente, claro está, que homens dos outros – dos sãos – não me visitam. Sofria de uma estranha condição, uma patologia nunca antes verificada, daquelas que valem a publicação de artigos nas melhores revistas da especialidade e, quem sabe, até um Nobel, no caso de se alcançar tratamento eficaz ou uma vacina preventiva. E que bom seria consegui-lo, eu que nunca triunfei em nada!

O homem que me apareceu, noutro dia, entrou na sala calado. Trazia na mão uma pequena geringonça onde escrevia muito rapidamente com os dedos, fazendo um toc toc toc curioso e que eu me lembrava de já ter ouvido algures. Por cima do sítio onde escrevia, uma superfície luminosa ia transmitindo aquilo que ele pretendia dizer. Era, para todos os efeitos, como se o dissesse realmente. Acontecia, porém, que o homem não falava de todo, e era isso que o incomodava. «Como palavras», escreveu. «Em vez de as falar, engulo-as». Era óbvio que a situação lhe causava grandes transtornos, e não me foi difícil, desde logo, começar a enumerar os mais óbvios. Por respeito ao paciente, fi-lo em silêncio.

Perguntei-lhe, então, se se alimentava bem, não fosse o vício de merendar palavras nutrido pela gula necessária que comanda os famintos. Respondeu-me que sim. Escreveu que fazia três refeições por dia e um pequeno lanche entre cada uma.

Perguntei-lhe se tinha gatos, já que é da sabedoria proverbial conhecido que tais felinos têm, por vezes, a infeliz ideia de comer a língua aos mais desprevenidos. Respondeu que não, que de gatos só tinha o medo.

Surpreso com a dificuldade do diagnóstico, resolvi então perguntar-lhe, como que para desanuviar a conversa, de que se ocupava ele. Escreveu – de resto, com todo o sentido – que era escritor. «Dos sérios.», acrescentou. Pedi-lhe que voltasse no dia seguinte com todas as folhas em branco que tivesse em casa, assim como todos os lápis e todas as canetas.

No dia seguinte, quando nos reencontrámos, tomei-lhe nas mãos todos os lápis e canetas, folhas brancas e ainda aquela engenhoca que usava para comunicar. Atirei tudo pela janela. De imediato, e já de viva voz, respondeu: «Obrigado.»

Hugo Picado de Almeida, Médico Charlatão

charlatão (do italiano ciarlatano)
adj. s. m.
1. [Antigo]  Que ou quem é inculcador de drogas, elixires e segredos de muito préstimo.
(…)
4. Que ou quem exerce medicina de maneira incompetente ou sem estar habilitado.

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Mitos, Pensamentos

2012

Ainda não tinha publicado nada neste ano que estamos agora a estrear, e bem sei que nos últimos dias do ano passado também nada aqui escrevi. Há, no entanto, boa razão para isso: importava deixar 2011 morrer tranquilamente, guardando o luto e o silêncio necessários, e os leitores farão a gentileza de concordar comigo em considerar que de assinalável mau gosto seria vir aqui brindar a chegada de 2012 com pompa e circunstância, esquecendo de imediato a queda em desgraça do ano transacto. Não se pense, portanto, e é isso que é preciso evitar pensar, que a preguiça triunfou finalmente, ou que as festas características da época varreram qualquer desejo de aqui voltar.

Voltemos, então, com algo útil para dizer:

Temo bem que este ano vá ter demasiada matéria para abordar, e não falo aqui da crise, porque não quero perpetuar o discurso emulador do poder. Só o discurso da crise permite a existência da crise. Falo, entre outras coisas, da paranóia que se instalará sobretudo pelas américas, com o aproximar de Dezembro próximo, de que este seja o último ano a que assistimos. Como dizia Baudrillard, a nossa cultura é uma cultura que só tem imaginário do seu fim, uma cultura niilista, portanto – Hollywood (como a literatura) tem sido exemplar em demonstrá-lo, com filmes como Guerra dos Mundos, 2012, Contagion, I Am Legend, e tantos outros que propagam a ideia de o mundo depois de nós. O próprio terrorismo é prova do nosso niilismo – «é estar obecado pelo modo do desaparecimento, e já não pelo modo de produção» (Baudrillard) -, e assim também o é todo o discurso político e todo o discurso religioso, munidos do discurso do terrorismo, da guerra, do juízo final, do apocalipse, do nuclear e das pandemias e, claro, o da crise.

O capitalismo – os modos de produção –  só sobrevive pelo fascínio do fim: é assim com a indústria bélica, com a indústria farmacêutica, e é assim também com todas as outras indústrias, quando a crise entra em cena para lhes dar o sentido que lhes escapava pela aparência da segurança e da saúde, pela aparência da democracia, pela aparência da paz.

 

Hugo Picado de Almeida

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