Pensamentos, Pessoas

Um catálogo de gentes

Não quero desiludir nem ofender ninguém, mas os hispters são, eles próprios, o triunfo da massa de que se pretendem distinguir, a vitória de uma lógica arquivística, categórica, de arrumação do social.

É essa a forma da sociedade responder aos fenómenos que a tentam negar: hippies, beatniks, punks, etc. Foi assim com a música alternativa e é assim, agora, com os hipsters. Ao dar-lhes um nome, ao constituí-los como um grupo objectivável e, sobretudo, como um público para o marketing – a lógica que rege as sociedades de massas -, aniquilou-os.

E a culpa não é de ninguém. A sociedade é que não pode funcionar senão assim, categorizando o desviante como desviante, para que todos possam sobreviver na sua forma expurgada, higienicamente arquivados e identificados, já sem possibilidade de causar qualquer dano ao ensemble das gentes e das normas.

Percebo que as categorias sejam úteis, mas irritam-me. Todas elas. E tanto piores são quando voluntariamente nos inscrevemos nelas.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

O trabalho e o prazer

As crises, sejam elas de que natureza forem, têm sempre um problema acrescido ao próprio problema que as produziu: fazem perder, nos indivíduos, o seu horizonte, visão, e objectivos.

Há um par de meses, vários jornais sugeriam aos estudantes os cursos com maior empregabilidade, como se essa fosse uma razão tão válida como qualquer outra na escolha do futuro. Não é. Estou, aliás, convencido de que terão sido artigos semelhantes que nos brindaram com funcionários das finanças tão simpaticamente talhados para as funções que desempenham.

Há que se fazer aquilo de que se gosta, aquilo em que se encontra prazer.

Muitos são os escritores que dizem que sofrem horrores ao escrever, que isso é algo que lhes dá dores terríveis. Escrever não é algo fácil, não é isso que quero dizer, mas se escrever me doesse, já há muito teria parado. A única forma de se fazer algo bem é fazendo aquilo de que se gosta.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pessoas, Política, Viagens

Descendo a Avenida da Liberdade

Passear na Avenida da Liberdade é algo que faço sempre com grande prazer, sobretudo quando os dias estão assim frios mas solarengos. Gosto do ambiente, da arquitectura dos edifícios, dos cafés e dos passeios, das amostras de jardins e riachos que neles correm, como que esquecidos ou indiferentes ao facto de terem existência ali, no centro da cidade, na mais cara avenida de Lisboa.

Gosto de tomar o pulso à vida que por ali passa; a rua inclinada é um bom barómetro das gentes.
Vejo os homens de fato e gravata que andam sempre em bandos; os homens de fato e gravata e boné dos New York Yankees na cabeça; um par de executivos britânicos parados no meio de uma passadeira com um portátil e livros nos braços; ali mais adiante, um casal que assina um contrato à mesa de uma tasca; aqui um valet de hotel que carrega um carrinho de malas e faz sinal a um táxi que escorrega pela lateral da Avenida; ali um arrumador; logo de seguida, um homem meio trôpego que já leva o depósito atestado para o resto do dia; ali um homem que me faz lembrar o Ministro da Economia, mas que vem a pé da decrépita Travessa da Horta da Cêra – não pode ser ele, portanto; não por vir de onde vem, mas por vir a pé -; depois uma mulher elegante e sedutoramente bem vestida que atravessa a rua perto de mim – divirto-me a ver os condutores parados no semáforo que lhe seguem as pernas com o olhar -; à porta do Parque Mayer os fantasmas que agora ali resistem e residem; junto ao Ascensor da Glória, os despojos da noite anterior, que veio descendo do Bairro Alto até ali perder a chama, entrando na avenida que exige o seu respeito, e que obriga os moinantes e foliões a dispersar para outras paragens mais sóbrias.

Mas passear na Avenida não é apenas interessante numa perspectiva cultural, nem pode, sequer, ser apenas um singelo passeio. Passear na Avenida é também uma importante lição política. Seja qual for o lado do amplo arruamento que escolhermos, seremos sempre brindados por um desfile de lojas selectas e preços concordantes, sendo assim lembrados de que esta crise do Euro, que é também uma crise da democracia, não é, de todo, uma crise democrática.

 

Hugo Picado de Almeida

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Livros, Pessoas

Os livros dos mortos

Há uma coisa que sempre me causou estranheza – bom, na verdade, há várias -, que sempre me provocou um desconforto intelectual daqueles que obrigam a escarafunchar a frontaria, mais ou menos perto das têmporas, onde o assunto logra promover certa comichão.

Não sei se repararam, mas poucos dias após a morte do Steve Jobs, havia já não um, mas sim quatro livros sobre a emblemática figura do mundo tecnológico. Mais, refiro-me aqui apenas aos que têm tradução portuguesa. Ora, aqui não se trata sequer de «uma questão de fazer as contas», como diria um antigo Primeiro-Ministro português, mas de algo muito mais simples. Dois destes livros saíram no mesmo mês em que Steve Jobs feneceu, os dois que restam saíram no mês seguinte. Sendo que uma tradução não se faz do dia para a noite, bem como a impressão de uma edição e sua distribuição, resta-nos concluir que ainda Steve Jobs respirava quando as palavras dos livros procuravam já extingui-lo.

Sejamos claros a este respeito: só em casos muito raros os livros se reportam, pelo menos elogiosamente, a quem está ainda vivo. Mais frequentemente os livros falam dos mortos, e nada de errado há com isso. Sabemos que os livros sobrevivem aos seus autores, mas, sempre que o dizemos, esquecemo-nos do resto: os livros sobrevivem a toda a gente, e nós só podemos sobreviver através deles.

Os livros não são do mesmo mundo que os vivos; é essa a razão, aliás, pela qual, assim que os compramos, vamos a correr colocá-los nas estante das nossas bibliotecas pessoais, espécie de cemitério de livros como os nossos próprios cemitérios, registo de corpos e de gentes, impressas nas páginas com a mesma possibilidade de sobreviver como nas letras gravadas na pedra dura das lápides.

É, por isso, preciso ter atenção. Se um dia assistirem à publicação de um livro sobre vocês mesmos, é provável que as engrenagens do mundo tenham começado a rolar em vosso redor, e a vida, ameaçada, tornar-se-á subitamente um lugar hostil. Um livro não deve conviver com o seu objecto.

 

Hugo Picado de Almeida

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Política

Entendendo os discursos do poder

Quando alguém diz algo tão bem e tão certo, resta-nos aplaudir e dar-lhe lugar. Hoje deixo-vos, por isso, com uma citação de Jean Baudrillard:

«(…) é enquanto acontecimentos hiper-reais, que já não têm exactamente conteúdos ou fins próprios, mas indefinidamente refractados uns pelos outros (tal como acontecimentos ditos históricos: greves, manifestações, crises, etc., é nisto que são incontroláveis por uma ordem que só pode exercer-se sobre o real (…), acabando o próprio poder por se desmantelar neste espaço e por se tornar numa simulação de poder (desligado dos seus fins e dos seus objectivos e votado a efeitos de poder e de simulação de massas). A única arma do poder, a sua única estratégia contra esta deserção do real é a de reinjectar real e referencial em toda a parte, é a de nos convencer da realidade do social, da gravidade da economia e das finalidades da produção. Para isso usa, de preferência, o discurso da crise (…). Enquanto a ameaça histórica lhe vinha do real, o poder brincou à dissuasão e à simulação, desintegrando todas as contradições à força da produção de signos equivalentes. Hoje, quando a ameaça lhe vem da simulação (a de se volatilizar no jogo dos signos) o poder brinca ao real, brinca à crise, brinca a refabricar questões artificiais, sociais, económicas, políticas. É para ele uma questão de vida ou de morte. Mas é tarde de mais.»

in Simulacros e Simulação, Lisboa: Relógio d’Água (1991).

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Crise, Mitos, Política

O nevoeiro vazio

Há coincidência bonitas. Coincidências como, numa manhã de nevoeiro como esta, me ter surgido no ecrã do computador o D.Sebastião, numa notícia que afirma que um retrato do antigo rei não teve compradores num leilão.

Aviso à navegação: nunca achei piada ao D.Sebastião, pela impulsividade e graves erros que cometeu, descurando todos os conselhos.

Ainda assim, não pode passar-nos ao lado que este rei, cujo desaparecimento transformou em mito e em sinónimo de esperança, mesmo nos tempos mais modernos, em que muitos certamente estão, em manhãs como estas, postados às janelas, à espera que o desaparecido regresse, triunfal, cadáver cavalgando num corcel dourado, rasgando a bruma como algodão-doce, não tenha despertado qualquer interesse num leilão.

Marca dos tempos, certamente, testemunho da conjuntura deprimente e em depressão. Se já não esperamos que D.Sebastião regresse para nos salvar, resta-nos agora esperar por um Filipe. Mas diz que para aqueles lados a coisa também não está fácil.

 

Hugo Picado de Almeida

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Livros, Pensamentos

O Tempo dos Livros

Lembrei-me que talvez os livros devessem poder ser escritos de um fôlego, de uma assentada, em apenas cinco minutos de escrita.

É que, convenhamos, o risco é grande quando se escreve um livro ao longo de meses: o risco de, quando se acabar, já não se ser quem se era ao começar, e isso reflectir-se-á invariavelmente na obra, que é a única que disso não tem culpa.

Há escritores que dizem que escrever lhes dói imenso. Não concordo com eles, mas se calhar é isso mesmo que lhes acontece: eles percebem que estão a mudar mais instantaneamente, e que o que foi já não é, que o que será não será mais o que foi, que o escrito se tornará desajustado quando comparado com o que falta escrever.

Por outro lado, será provavelmente bom que os livros não se escrevam de uma assentada. Só assim, nessa duração que eles realmente têm, podemos aprender com eles, porque o tempo que passa permite que os vamos olhando com novos olhos e de novas perspectivas – que importam mais do que os olhos. Só o passar do tempo permite que vamos mudando e crescendo. Só o passar do tempo pelos livros escritos possibilita a vontade de escrever novos livros.

 

Hugo Picado de Almeida

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Livros

A (in)justiça nas estantes

Um dia destes, ao ordenar os livros na minha modesta biblioteca, percebi quão injusta a vida pode ser, mesmo quando as razões são as melhores.

É que, convenhamos, nem a mais bem intencionada lógica arquivística, obedecendo a categorias e a temas, pode desculpar o facto de sentar o Mein Kampf, de Adolf Hitler, ao lado d’A Condição Humana, de Hannah Arendt. Felizmente ainda tive o discernimento suficiente para pôr um par de livros de Heidegger, amante desta última, e membro do partido Nazi, numa outra prateleira.

Ao mesmo tempo, ao lado de uns livros do Saramago, acabaram por ficar, mais pelo acaso e pela coincidência de também serem autores portugueses, um par de escritores muito pouco conhecidos, daqueles, até ao momento, de obra única. Não o fiz de propósito e também despropositadamente não o desfiz.

Como nos dizia o Professor Abel Barros Baptista, os livros tornam-se independentes do seu autor (e na maioria das vezes, felizmente!, dizia ele. O que seria termos o autor ao nosso lado, espreitando-nos sobre o ombro, enquanto lemos uma obra?), mas será que os caminhos que tomam os seus exemplares não lhes importariam, se eles pudessem saber por onde se passeiam eles? Não é tanto que eu tema que um livro quase anónimo, sentado ao lado do Saramago, possa ser por essa proximidade elogiado e tornado literatura; temo, isso sim, que o exemplar do Saramago se possa ressentir e vingar-se da próxima vez que eu o abra para o ler.

Dizia o Professor Abel, na edição de Junho passado da Revista LER, que «cada livrinho individual só é possível por trazer em si, não o palerma do autor, mas uma ideia do que são em geral os livros de literatura». Parece-me que ele poderá ter razão e, por isso, não resisti a sentar o exemplar do livro que tem o meu nome na capa ao lado desses grandes vultos da literatura, esperando que, assim como a madeira faz bem ao vinho, a companhia na estante lhe faça bem a ele.

Hugo Picado de Almeida

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