Há já algum tempo que percebi que o Metro é dos melhores contadores de histórias que por aí andam. E dos mais surrealistas, por vezes non-sense, também.
Decidi, então, que hoje haveria de empenhar-me durante a viagem e sair dela com algo para escrever, partindo de uma das mirabolantes conversas que se ouvem todos os dias nos túneis da cidade. Porém, como os átomos em roda-viva que ora colidem ora se evitam e assim definem o curso do universo gostam pouco destas tomadas de decisão impetuosas que lhes retiram protagonismo, tudo se conjugou nos Passos Perdidos da galáxia num grupo de pressão para abalar os meus intentos: no metro, numa carruagem cheia em hora de ponta, uma multidão calada. Quarenta ou cinquenta pessoas caladas; um espectáculo entre o dantesco e o kafkiano. Não sei como é que as sardinhas em lata ocupam o tempo nas prateleiras do supermercado mas, se me pedirem opinião, acredito que seja a falar, pois tudo o resto lhes deverá ser difícil. No Metro, porém, a lógica é contrária: quanto mais sardinhas há, menor é o falatório.
Algumas pessoas liam — essas as únicas com uma boa desculpa para não falar –, outras olhavam, muito concentradas, os fundos da carruagem, consoante o lado para onde estavam viradas — há-de ser de uma beleza estonteante, esse azul plástico que compõe a carcaça da máquina –, algumas dormiam, de pescoços caídos para a frente ou refastelados para trás, no confortável travesseiro da barra metálica que separa os bancos, mas outras, muitas — ó que regalo! — falavam realmente, mas esgrimindo argumentos furiosos com as teclas do telemóvel, num tac-tac zangado que revelava espadachins e discussões. Percebo agora que minto. Afinal, alguém falava; uma voz se ouvia ao longe na carruagem. Poeticamente, ainda assim, essa voz, imersa na multidão, não tinha rosto para mim. Aqui, parei de observar as pessoas, até porque uma rapariga incapaz de medir distâncias começava a tentar implantar-me um dossier de medicina entre duas costelas, como que me convidando a deixar de armar em parvo.
Quando Habermas falava na decadência do espaço público face ao crescimento dos mass media eminentemente comerciais, tinha razão. Contudo, talvez nunca tenha existido um verdadeiro espaço público antes da internet. O espaço público está hoje na rede — não na do Metropolitano, mas na outra –, e é lá que está a cabeça das pessoas cujo corpo viaja sozinho e silencioso, porque logo por azar calha a boca estar situada na cabeça, nos comboios do subsolo.
(Curiosamente, numa daquelas coincidências bonitas, já depois de ter escrito este artigo, eis que abro o Público e a crónica da terça-feira, escrita pelo Vítor Malheiros, cuja leitura recomendo, começa assim: «As pessoas andam caladas. Na rua, nos centros comerciais, nos transportes públicos, nos cafés e restaurantes. Até nas manifestações é difícil pôr uma multidão a escandir uma palavra de ordem e, quando o fazem, dura pouco. Custa-lhes falar. Ou será só impressão minha?»)
Hugo Picado de Almeida