Pensamentos

Há um grilo no photomaton

Desde há uma semana, vive num photomaton da estação de Metro do Marquês de Pombal um grilo. E um grilo gigante, a considerar pela chinfrineira com que todas as manhãs brinda os passageiros em passo estugado, como mandam os relógios.

Há-de ter muita burocracia cívica de que se ocupar, o pobre do grilo; toneladas de formulários onde apor a imagem do seu rosto grilesco, a julgar pela frequência diária do photomaton onde os humanos fazem filas para receberem as suas próprias estampas antes de atravessarem o corredor para ingressarem noutra fila, desta vez à porta do gabinete de cliente do Metropolitano, espécie de purgatório onde uma multidão brandindo senhas se submerge em convulsões tibiotársicas e de pulsos que haveriam de abismar o melhor preparador físico.

Nunca parei para reparar — porque também eu sigo no meu passo apressado; sigo à paisana, para que não me olhem de lado –, mas aposto que, olhando por debaixo das cortinas que escondem o cliente do photomaton, se hão-de ver umas pernas. Há sempre umas pernas, é certo, mas menos vezes são umas pernas nuas, e raramente umas pernas dignas de serem vistas numa manhã quente quando as raparigas da cidade cheiram a Verão. E se isso é raro, já alguém terá visto umas pernas esverdeadas num photomaton, pernas escanzeladas e torcidas, quer dizer, à grilo?

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Pessoas

Escusatório

No Metro, as palavras que mais se dizem estão em pedidos de desculpa. A todo o momento, «desculpe, desculpe», «com licença», «peço perdão». Tudo merece escusas, da mais flagrante pisadela ao mais leve e involuntário roçar de cotovelos, que o puritanismo dos anónimos — pudor num subterrâneo!, que bonita imagem — da cidade converte em ofensa pronográfica.

Não tocar! Não mexer!
Não ouvir, não falar, não ver.

O Metro é uma espécie de viveiro das cidades, onde se vai beber a lógica que nos há-de valer à superfície. É neles que se aprende um exacerbado proprietarismo que, primeiro sobre o corpo, depois se estende a tudo. Não sei bem o que mantém as cidades unidas, mas o que se vive no Metro não leva a crer que sejam as pessoas. Será, talvez, a atracção por uma centralidade artifical, como diz Baudrillard, essa noção de que não há motivo para a deixar.

 

Hugo Picado de Almeida

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Ficções, Pensamentos

«Marquês Falls»

Na estação de Metro do Marquês de Pombal, em hora de ponta, a escada que leva da plataforma ao átrio é como uma cascata ao contrário.

Eu, que espero sempre cá em baixo pela passagem da sétima onda para depois atravessar a vau, hei-de um dia ser punido por me armar em esperto e em diferente. Imagino frequentemente que basta que uma daquelas gotas de água tropece para, qual pino de bowling com um achaque, arrastar todas as outras consigo e fazer mudar o sentido à cascata, transformando-a em maremoto, algo que não me agrada, a mim que espero em baixo e que sigo bem engomado para o trabalho, onde dão preferência a que chegue enxuto.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Pessoas

Criaturas fantásticas: o padeiro

Hoje vi um padeiro. E, aqui, peço já ao leitor que não se amofine pela aparente promessa de disparate que tal frase inaugural pode pôr sobre a mesa, e que não seja tão lesto em julgar como patético o carácter deste texto. Dê-lhe uma oportunidade antes de fechar a página, rogo-lhe. Recomeços, pois: Hoje vi um padeiro. Eram 8h25, o sol raiava já sobre os prédios, e eu via um padeiro. Pelas costas, é certo, a entrar no seu prédio, mas era um padeiro. Apressado que ia, mesmo assim de fugida dava para ver que se tratava de um padeiro. Era um padeiro, sem dúvida, completo nas suas calças largas de riscas azuis e brancas, na jaqueta branca e direita, e no chapéu, também ele branco e de formato a preceito.

«Mas o que há de tão extraordinário em ver um padeiro?», poderão alguns perguntar. Para começar, o próprio acto de o ver. O caso parece-me óbvio, mas empreenderei na sua explicitação. Digamos primeiramente, e para assentar a poeira — ou talvez para a levantar –, que a surpresa de ver um padeiro é parente do embasbacamento sentido na presença de um fantasma, ou até de um vampiro. É que todos os três são criaturas da noite — padeiro, fantasma e vampiro –, e é assim que as coisas devem ser. Ensina-nos a literatura, da mais infantil à mais depravada, da original impressa até à cinematizada, que, de noite, só anda gente de má rês. Não sei quem foi que assim o designou, mas toda a gente o sabe: de dia, passeiam-se as virtudes; à noite, vagueiam os pecados. É por isso que nos espantamos grandemente quando um crime é cometido «em plena luz do dia».

As fronteiras estão assim traçadas para que não corra riscos quem não os quer correr, e talvez resida aí a raíz do meu sobressalto. Andando na rua à noite, exponho-me a fantasmas, vampiros e padeiros. Mas encontrar uma destas criaturas fantásticas logo pela manhã é de fazer temer pelo dia. E mais, atrevo-me a dizer: algo assim abala todos os bastiões da segurança.

É que a sua caracterização literária proibiu os fantasmas de andarem por aí durante o dia, e a natureza dos mistérios descabidos encarregou-se de tornar o sol insuportável para os vampiros. O Homem tentou fazê-lo com os padeiros, inventando que não pode arrancar o dia sem que haja pão quente sobre a mesa. Ora, aí está a origem do meu infortúnio, ao descobrir que afinal os padeiros são gente como nós, que suporta bem a luz do sol, que gostam de alho e provavelmente de prata e, até, que convivem muito bem com a farinha de trigo, com a de milho e com o fermento, tudo coisas pelas quais não se conhece o gosto de fantasmas, que não consta que comam coisa alguma, nem dos vampiros, quiçá por lhes congestionar as papilas gustativas ou por lhes tornar rombos os caninos.

Quantas vezes nos cruzamos com estas criaturas fantásticas na vida? A maioria de nós só toma contacto com elas em livros ou em filmes, pelo que certamente compreenderão a minha excitação. Nunca vi um fantasma nem um vampiro; sorriu-me hoje o acaso: vi um padeiro.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

Histórias a Metro #1

Há já algum tempo que percebi que o Metro é dos melhores contadores de histórias que por aí andam. E dos mais surrealistas, por vezes non-sense, também.

Decidi, então, que hoje haveria de empenhar-me durante a viagem e sair dela com algo para escrever, partindo de uma das mirabolantes conversas que se ouvem todos os dias nos túneis da cidade. Porém, como os átomos em roda-viva que ora colidem ora se evitam e assim definem o curso do universo gostam pouco destas tomadas de decisão impetuosas que lhes retiram protagonismo, tudo se conjugou nos Passos Perdidos da galáxia num grupo de pressão para abalar os meus intentos: no metro, numa carruagem cheia em hora de ponta, uma multidão calada. Quarenta ou cinquenta pessoas caladas; um espectáculo entre o dantesco e o kafkiano. Não sei como é que as sardinhas em lata ocupam o tempo nas prateleiras do supermercado mas, se me pedirem opinião, acredito que seja a falar, pois tudo o resto lhes deverá ser difícil. No Metro, porém, a lógica é contrária: quanto mais sardinhas há, menor é o falatório.

Algumas pessoas liam — essas as únicas com uma boa desculpa para não falar –, outras olhavam, muito concentradas, os fundos da carruagem, consoante o lado para onde estavam viradas — há-de ser de uma beleza estonteante, esse azul plástico que compõe a carcaça da máquina –, algumas dormiam, de pescoços caídos para a frente ou refastelados para trás, no confortável travesseiro da barra metálica que separa os bancos, mas outras, muitas — ó que regalo! — falavam realmente, mas esgrimindo argumentos furiosos com as teclas do telemóvel, num tac-tac zangado que revelava espadachins e discussões. Percebo agora que minto. Afinal, alguém falava; uma voz se ouvia ao longe na carruagem. Poeticamente, ainda assim, essa voz, imersa na multidão, não tinha rosto para mim. Aqui, parei de observar as pessoas, até porque uma rapariga incapaz de medir distâncias começava a tentar implantar-me um dossier de medicina entre duas costelas, como que me convidando a deixar de armar em parvo.

Quando Habermas falava na decadência do espaço público face ao crescimento dos mass media eminentemente comerciais, tinha razão. Contudo, talvez nunca tenha existido um verdadeiro espaço público antes da internet. O espaço público está hoje na rede — não na do Metropolitano, mas na outra –, e é lá que está a cabeça das pessoas cujo corpo viaja sozinho e silencioso, porque logo por azar calha a boca estar situada na cabeça, nos comboios do subsolo.

(Curiosamente, numa daquelas coincidências bonitas, já depois de ter escrito este artigo, eis que abro o Público e a crónica da terça-feira, escrita pelo Vítor Malheiros, cuja leitura recomendo, começa assim: «As pessoas andam caladas. Na rua, nos centros comerciais, nos transportes públicos, nos cafés e restaurantes. Até nas manifestações é difícil pôr uma multidão a escandir uma palavra de ordem e, quando o fazem, dura pouco. Custa-lhes falar. Ou será só impressão minha?»)

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Livros, Pensamentos

Intertextualidade nasal

Ilustração de Сергей Алимов

Não sei ao certo que factores se jogam, findo um livro, na escolha da leitura seguinte.

E, por não sabê-lo, mas imaginando que os há, é que me surpreendo brilhantemente quando algum tema ou preocupação, de narrador ou de outras personagens, se toca entre o livro que se acabou de ler e aquele que se começa em seguida.

Ontem à noite terminei a releitura d’ O Nariz, de Gogol. Esta manhã, ao começar Consolação Número Três, de Santos Fernando, havia então de me deparar — já o devia esperar — com um curioso parágrafo sobre protuberâncias nasais. E se a preocupação de Gogol, ou de Kovaliov, seu protagonista, era de não poder frequentar a casa de Podtótchina, mulher de oficial superior, ou a casa de Chektariova, mulher de conselheiro de Estado, as preocupações do Conde, personagem de Santos Fernando, são, de algum modo, semelhantes. Explica ele, depois de se estender numa lista de tipologias nasais: «O meu nariz poderá não ser o centro do universo, mas é a primeira coisa para a qual as mulheres reparam, principalmente no Inverno, quando muda de cor, feito barómetro caseiro. (…) Quando se beija, o nariz ocupa uma posição vantajosa e exerce as funções de guia no labirinto do amor. Adunco ou abaulado, um nariz é um cartão de visita, um passaporte com visto para além da Cortina de Ferro. Conheço os homens pelo seu nariz e as mulheres pela forma como o acolhem.»

Vemos, assim, que o terror de Kovaliov é pleno de sentido: a prová-lo está a impossibilidade que sentiu de se apresentar à jovem «esbeltazinha» e delicada que encontrou na igreja. Afinal, por onde se começa a conhecer um homem sem nariz?

 

Hugo Picado de Almeida

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Pessoas, Política

Dominar as metáforas

Carlos Teixeira, Presidente da Câmara de Loures, não se conforma com a provável transferência dos terrenos do Parque das Nações para a Câmara de Lisboa e, como tal, recorreu à metáfora, ou melhor, às metáforas. Carlos Teixeira, é certo, não é poeta refinado, mas veio ensinar-nos a todos que a metáfora está ao dispor dos cidadãos, e que ela é democrática mesmo quando tudo o resto não o é.

Na conversa com o Público, Carlos Teixeira optou por dizer:
«Não vamos vestir a noiva para ser outro a despi-la.», e ainda «Não faz sentido engordarmos o porco para outros comerem as febras.»

Depois da bofetada popularucha que estas metáforas assentam na cara de qualquer leitor, percebemos que elas, afinal, representam a inocência de um político, algo estranho num político com a experiência de Carlos Teixeira, e isso, aqui que ninguém nos ouve — quanto mais não seja porque se trata aqui de texto escrito — é bonito e, quanto a mim, até enternecedor. E se no meio rural quem engorda o porco deverá ser quem come as febras, desde há muitos anos que isso deixou de fazer sentido para muita gente, nas cidades. Agora, mais estranha é a metáfora matrimonial. Não sei como se casam as gentes em Loures, mas não creio que alguma vez o noivo tenha vestido a noiva, ou que a modista tenho tido o prazer de a despir depois.

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

Escrever: Perspectivas

Sempre me custou compreender — e perdoem-me os meus leitores assíduos (esses dois ou três), que já me terão ouvido queixar sobre o assunto vezes sobejas — os escritores que dizem que escrever lhes dói terrivelmente.

Desde segunda-feira numa nova rotina, e circulando entre o trabalho e a minha tese, uma das coisas que me dói é o não escrever, a falta de tempo para escrever. Felizmente que a tese e o trabalho me encarregam sobretudo de escrever, e em doses confortáveis, mas não é a mesma coisa.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Pensamentos

Indícios de um Manifesto

Uma das oito regras para escritores que o famoso Kurt Vonnegut definiu diz o seguinte:

«Give your readers as much information as possible as soon as possible. To heck with suspense. Readers should have such complete understanding of what is going on, where and why, that they could finish the story themselves, should cockroaches eat the last few pages.»

De alguma forma, revejo-me nestas linhas. Não me considero um grande contador de histórias. Não tenho particular capacidade para arquitectar uma teia intrincada e de a esconder do leitor — e não estou interessado em tê-la –, desvelando-a um pedaço de cada vez, de tal forma que quem lê chegue a um momento de estonteante clarividência, a ponto de soltar uma exclamação e de rasgar um sorriso, admirando o engenho do autor. Eu também o admiro quando leio alguém assim, mas não é isso que quero para mim.

O meu objectivo, naquilo que escrevo, é de interpelar directamente o leitor, de não o fazer esquecer que está na presença de um livro e não de uma novela que se finja real. As histórias verídicas tendem a ser melhores, por isso há que ir além do real, além do possível e do impossível. A literatura deve poder fazer aquilo que a realidade não pode, seja tornando-se surreal nos seus acontecimentos e nas suas gentes, seja mergulhando a fundo dentro do espírito das suas personagens. Essa é a ferramenta que a Arte tem a mais do que a vida; isto é o que a Arte pode fazer pela vida: dar-lhe o que ela não pode ter.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Pessoas, Política

O acidente de Miguel Relvas

Sinto, de alguma forma, que estou em incumprimento ao ainda não ter dito uma linha sobre a licenciatura do Ministro Miguel Relvas. Mas, afinal, o que é que eu tenho para dizer que valha a pena ouvir? É nisto que tenho pensado. O que é que eu tenho para dizer que não seja mero ruído ou repetição? Nas próximas linhas tentarei debelar esta incerteza.

Há coisas que me fascinam tanto quanto me assustam; este é o par segundo o qual muitas coisas se nos apresentam. Por exemplo, a destruição do corpo. Em que é que isso me assusta, parece evidente; em que é que isso me fascina pode constituir matéria mais obscura, eventualmente digna de análise psiquiátrica, poderá dizer o leitor. Mas não é esse o caso. Lá por me fascinar, está longe de me atrair. O resultado repele-me, como à maioria tranquila das pessoas saudáveis; o que me fascina, a bem dizer, é o processo, ou melhor ainda, o nosso arsenal natural para negar o processo.

Tornemos as coisas mais claras, recorrendo para isso à História e à Biologia da Humanidade: os nossos ossos estão prontos para aguentar o impacto da queda numa corrida a pé, e mesmo a queda de uma árvore de baixa estatura onde os nossos antepassados eventualmente pudessem querer subir na procura de alimento. Simplificando: os nossos ossos estão naturalmente equipados com a robustez e elasticidade necessárias para nos defender dos nossos próprios meios de locomoção, ou dos acidentes que por eles possamos enfrentar. Mas o corpo não previu que construíssemos motas e automóveis — e que nos lançássemos depois à velocidade que eles permitem –, ou que erguêssemos arranha-céus de onde cair, ou que inventássemos a vontade para escalar sequóias gigantes por recreação. É assim que acidentes envolvendo os exemplos mencionados atrás nos lesam muitas vezes o corpo de forma grave, quando não fatal. As forças envolvidas superam os parâmetros da nossa resistência, e tudo se resume a isso.

Ora, o mesmo aconteceu a Miguel Relvas, a quem a licenciatura parece ter saído como brinde numa caixa de cereais ou num Happy Meal. É que ao invés de percorrer a licenciatura à velocidade normal, a pé e com o esforço adequado ao modo de locomoção, Miguel Relvas, querendo negar a norma que regula a vida dos comuns mortais, quis fazê-lo numa daquelas motas de competição, da qual acabou naturalmente por cair e, como veremos num dos próximos capítulos, por sair fatalmente magoado, destruído no espírito, o que na vida pública está mais exposto ao risco do que o corpo.

 

Hugo Picado de Almeida

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