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Henri Cartier-Bresson, Dieppe, France, 1926.

Henri Cartier-Bresson, Dieppe, France, 1926.

Encolho-me na cama como se voltasse a nascer
Com as dúvidas mesmas que hão-de ter as crianças logo após o parto.
Nesses momentos de tempo incontável
Em que a bússola se faz relógio e troca o Norte pela sorte de acertar,
Fico atento à pulsação que o corpo me marca sobre a almofada
Como passos no soalho por detrás da fronte no sótão de madeira
Em que quem há em mim se passeia e divaga.
Como se a noite pudesse ser boa conselheira,
Como se, enfim, fosse sua a certeza,
De nas orelhas da almofada ou nas almofadas das mãos
Poder dar-se aos conselhos carícias de amantes.
De noite quem é pardo são talvez as ideias:
As narrativas como volutas em enlevada suspensão,
O trágico negrume da fronteira amargada,
O comboio de luz e o traço fugaz,
A promessa-miragem que talvez não se fará
E o vazio da manhã, abraço de nada.
Como se quisesse a noite fazer-se fronteira,
Ao dia roubando a clarividência
Mas nele projectando, a salto, a essência
Do bilhete impresso em tons de alvorada.

Hugo Picado de Almeida

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