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Ainda o amor

Dante disse talvez a única coisa que acertadamente já se disse sobre o amor, quando nos inícios d’A Divina Comédia escreveu: «O amor, que a nenhum amado poupa o ter de amar…»

De resto, continuamos a escrever sobre o amor como desde que começámos a contar os séculos e, pior, querendo ainda que ele continue a ser aquilo que nunca foi. À força de o desejarmos e da importância que justamente lhe atribuímos, fizemos-lhe a desfeita de o catapultar para a esfera do divino, de erguê-lo como cúpula cristalina sobre o nosso edifício humano quando ele deveria ser o chão e as paredes que se partilham connosco ou o ar que nos envolve e compõe. Continuamos a insistir nele como uma sorte incrível, o predestinado encontro entre duas pessoas que não poderia senão dar-se, loucura estatística por entre a multidão dos potenciais amantes em órbita. É preciso perceber e assumir que nos apaixonamos por quem encontramos, claro, mas que nos poderíamos também apaixonar por quem encontraríamos se estivéssemos noutro lugar. Não há destino, há um acaso inicial, como o de qualquer encontro. Tudo o resto é que o fazemos dele. Tudo o resto acontece por nós.

Hugo Picado de Almeida

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Estamos sempre a escrever sobre o amor

«I never felt right being alone; sometimes it felt good but it never felt right.», Charles Bukowski.

Na verdade, nem importa muito sobre o que escrevemos. Estamos sempre a escrever sobre o amor. E se comummente temos sucesso em camuflá-lo, isso não nos deve iludir. Estamos sempre a escrever sobre o amor e não nos libertamos disso. E bem, pois é ele a única coisa sobre a qual vale a pena escrever. É ele a coisa por que vale a pena viver.

Por excelência, o escritor é o homem longe de quem ama. Sei bem que, de outro modo, ele largaria caderno e caneta e saberia as mãos mais bem ocupadas. O que se escreve pode bem mais proficuamente dizer-se ao ouvido. O que se escreve pode bem mais prazerosamente comunicar-se por lábios e mãos. A vida fez-se durante séculos ou milénios sem da escrita ter tido necessidade, e a maioria das mulheres do mundo foi conquistada sem serem necessários poemas. Não foi a literatura que trouxe aos Homens os dilemas, nem tão pouco se propôs deles a libertá-los. Porque a escrita vem depois da vida mas não vai além dela. Nem deve, pois que aí perderia toda a relevância que tem. A escrita não nos serve para nada a não ser desejar ou sonhar.

O escritor sabe disso, assim como sabe que há melhor companhia na cama do que uma caneta destapada.

Hugo Picado de Almeida

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Contracapa

Sofro sempre que o caderno me começa a chegar ao fim. Não há uma marca que o indique nem eu sei dizer se o fim se encontra a dez, vinte ou trinta páginas. Mas que ele se anuncia perto torna-se imediatamente claro e, agora, inegável e impossível de desprezar. Não é tanto que me faça refém o medo de não ter onde escrever, que a caneta tem tracção às quatro e meia dúzia de euros compram novo caderno. O que acontece é que um caderno perto do fim é um caderno que deve ser terminado. É um caderno que exige ser cumprido até ao fim. Há nisso a vertigem de uma promessa. Como o avião que, em queda, não pode senão estatelar-se com estrondo. Ninguém lhe admitiria a suspensão, a interrupção do sentido dos acontecimentos. Porque o fim de um caderno carrega sempre uma ameaça: a do corte da palavra, do abortar de uma linha, do atentado contra uma ideia.

Há, evidentemente, questões práticas a considerar: o que fazer nos próximos dias? Arriscar sair apenas com um caderno à rua? Claro que dois são sempre solução, mas o segundo torna-se empecilho, sobretudo se se der o caso de tornar a casa com o livrinho ainda sem uso, ainda embalado no seu plasticozinho tonto que o convence de que é ou pode vir a ser alguém. Passear por aí com um caderno por usar é talvez mais do que o necessário para alguém se ver à mercê dos electro-choques ou encarcerado numa sala almofadada.

Mais do que isso, talvez me atormente que um dia alguém pegue no caderno e, chegando à derradeira página, deite a vida a perder por não achar conclusão para esta ou aquela ideia, ou – o que seria pior −, ficar convencido de que eu não tive perícia suficiente para a concluir. Mas bom, estimo ter ainda umas boas dez páginas até ter de me preocupar verdadeiramente com isso.

Hugo Picado Almeida

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Regras para deitar um escritor #1

Assim como os bebés não devem ser deitados de barriga para baixo, para que não sufoquem no seu bolçar, também aos escritores se deve evitar deitá-los nesta posição. De cabeça caída sobre o caderno escancarado há o risco de que morram aspirando as palavras que nem sempre da forma mais acertada vomitam.

Hugo Picado de Almeida

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Não pintar a Liberdade

Não sei já quem é que outro dia ouvi dizer que o que detestava no pintar das paredes lá de casa era o saber que o quarto se tornava mais pequeno a cada nova demão dada, sufocado pelas camadas de tinta que, em micro-escala, iam ocupando das paredes para o centro toda a divisão. E se a ideia pode parecer tola ou inocente, radical ou despicienda, ela parece-me sobretudo uma das coisas mais genuinamente poéticas que se pode dizer da Liberdade. Ah!, que bela homenagem lhe faria se ao menos me lembrasse de que indivíduo era esse para quem uma fracção de milímetro podia representar ameaça e prisão.

Hugo Picado de Almeida

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O facto de não haver título não deve impedir a publicação do texto

felix-moati-libre-et-assoupi

Fotograma de Libre et Assoupi, de Benjamin Guedj (2013).

Ia começar por me penitenciar pelo aborrecimento que será para as três ou quatro pessoas que me lêem pela quantidade pouco razoável de vezes que tenho escrito a partir do cinema, mas creio que não chegarei a fazê-lo. O cinema e a literatura não são nada de especial senão pedaços do dia-a-dia como, digamos, momentos narrativos pouco diferentes, na verdade, de uma ida ao talho, de um copo entre amigos ou, tão simplesmente, do acto de deixar cair o corpo sobre a cama. A realidade e a ficção não são, bem vistas as coisas, dois pólos distintos. A ficção, no momento em que o é, é a própria realidade.

Só assim se pode ver, na sexta-feira, aquela cena do Annie Hall, do Woody Allen, em que o jovem Arvy, em pleno consultório psicológico, afirma que o que o preocupa e impede de fazer seja o que for — trabalhos de casa incluídos — é o facto do universo estar em expansão, com a inevitável promessa de um dia rebentar, ao que a mãe, com visível irritação e radical pragmatismo responde: «Mas o que é que tu tens a ver com o universo? Tu vives em Brooklyn. Brooklyn não está a expandir-se!», e, no domingo, se esteja diante do Libre et Assoupi, de Benjamin Guedj, onde Sébastien tem como objectivo de vida não fazer absolutamente nada. Talvez o pequeno Arvy, que vira comediante e sofre o desgosto da separação da Annie que dá o título ao filme possa também ele ser Sébastien, que nunca chega a apaixonar-se pela Anna do seu filme e que é confrontado com a impossibilidade de não fazer nada.

Mas não te preocupes, caro Arvy. O Sébastien acaba a vender camas de luxo, num negócio que parece próspero, e, mais importante do que isso, parece viver feliz com Valentine Caillou, sua paixão à primeira vista.

O cinema, tal como a vida de que faz parte, tem destes encontros.

Hugo Picado de Almeida

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«Não há aqui morte de Homem»

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Afonso da Maia (João Perry), à esquerda. Tom Seyr (Romain Duris), à direita.

Entre a adaptação d’Os Maias, por João Botelho, e o De Battre Mon Coeur s’est Arrêté, de Jacques Audiard, há um ponto de toque; uma mesma frase, a que diz Afonso da Maia, avô do desventurado protagonista, e a que diz Tom Seyr, personagem principal do filme francês: «Não há aqui morte de Homem.»

A mesma frase, com o mesmo sentido em ambos os filmes, para diminuir a relevância de uma situação trágica, mais trágica certamente n’Os Maias, já que o incesto será talvez sempre um pouco mais fracturante e inquietante do que um atraso para uma reunião de negócios, como acontece no filme de Audiard.

Afinal, a «morte de Homem» talvez seja a única verdadeira tragédia, e a capacidade de o dizermos a prova última do nosso forçosamente raro esclarecimento pontual. Não deixa de ser admirável e certamente não será mera coincidência que a frase assista Tom no momento da sua recuperação interior, da sua redenção moral. Afinal, talvez uns minutos antes a frase fosse impossível para ele. Ele, Tom, mais peculiar do que menos, menos amável do que mais, que, de radical e transviado agente imobiliário − cujo expediente se faz sobretudo de colocar ratos em prédios, expulsar ocupadores e partir vidros e soalhos flutuantes −, procura tornar-se num virtuoso pianista de concerto. Talvez seja que o Mundo, no final do filme, lhe corte as vazas e lhe mostre que as coisas não são tão simples assim e que a violência da vida possa querer mais, mas bom, Tom, que isso não te deixe mágoa nem murmúrio, nem te tolha as pernas. Bem vistas as coisas, «Não há aqui morte de Homem».

Hugo Picado de Almeida

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Ainda e sempre o Brel

jacques_brel

Não sei quantas vezes já aqui falei do Brel, mas todas quantas tenham sido foram ainda e sempre poucas para começar a fazer-lhe jus.

Tenho a certeza: a música do Brel pode salvar uma vida, pode curar um Homem de tudo. Aquela voz cheia, grave, cinemática, cinematográfica e teatral, tão perfeitamente protagonista no que se imagina um palco a preto e branco, os instrumentos etéreos, incomparáveis ao homem, apesar de belos. Fecho os olhos e a voz do Brel é tudo, prometendo que de Homens e incertezas e esperanças todos temos medida semelhante. Como dizia o Bukowski, «Estamos todos eivados de loucuras e fealdades várias das quais não nos apercebemos mas das quais toda a gente ao nosso redor se apercebe.» E o Brel vai entoando:

Quand’on a que l’amour
Pour unique raison
Pour unique chanson
Et unique secours

O texto dá o mote e a orquestra vai-se entusiasmando, enrubescendo, cavalgando a voz impetuosa do Brel, deixando-se enlear no sonoro poema, naquele premente abraço que as suas palavras prometem sempre, naquele calor de cigarros e cafés misturando-se com as vozes e o vapor e a vida enevoando a noite à cidade.

Quand’on a que l’amour
Pour tracer un chemin
Et forcer le destin
A chaque carrefour

A voz, muito humana e honesta, que poderia tão bem ser a nossa, circulando como a vida, entre a melancolia e a esperança, crescendo depois, heróica, até ao enfatuamento que, no fim da música, tanto pode resultar em concretização como passo último antes da fragmentação solipsista da insónia. Não o sabemos nunca.

Porque a música do Brel é da mesma matéria que se faz a vida. Ou talvez a vida seja da matéria que se faz a música do Brel, arriscar-se-ia dizer. O piano dança, enlaçado com a voz encorpada do belga, na intimidade que traz as cinturas próximas uma da outra, as bocas juntas.

Je creuserai la Terre jusqu’après ma mort,
Pour couvrir ton corps d’or et de lumière.
Je ferai un domaine où l’amour sera roi,
Où l’amour sera loi et tu seras reine.

Nada mais, nada menos. A inquietação do melhor humanista, os desejos do maior sonhador, as efabulações mais desmedidas e originais, mais apaixonadas ou mais iludidas, para o bem e para o mal. E os precisos mesmos medos que se podem fazer abismo.

Em três minutos da música do Brel cabe o Mundo, uma total compreensão da vida, das coisas dos Homens, um olhar tão esclarecido, sem nunca ser descomprometido ou distante, sobre quem vive e quem viveu, quem ama e quem amou. Em poucos acordes, num punhado de versos, um tratado sobre as relações humanas, em todos os seus tons e transposições, expostas no mais belo dos peitos nus, cartografia à flor da pele.

Hugo Picado de Almeida

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Balzac estava errado

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Composição a partir de 3 fotografias de Prokudin-Gorsky, feitas entre 1909 e 1911, na Rússia.

Balzac estava  errado. A fotografia não rouba o corpo, antes o constrói. Não apaga camadas, antes as adiciona. E preserva. É assim que as fotografias de Sergey Prokudin-Gorsky, nos primórdios da história da fotografia a cores, nos trazem hoje gentes que, de outro modo, teriam já perdido todas as suas camadas, deixado de habitar o planeta, no anónimo esquecimento que, mais tarde ou mais cedo, nos vence pelo cansaço. Gentes que, no que nos concerne, nunca teriam sequer chegado a existir.

Diz-se que as pessoas morrem duas vezes: uma quando morrem, de facto, e outra quando o último indivíduo que as conheceu diz o seu nome pela última vez. Mas talvez haja uma terceira forma de um Homem desaparecer: quando se destrói a sua última fotografia. O digital arrisca-se, por isso, a cumprir a promessa de nos tornar imortais.

Hugo Picado de Almeida

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