Não sei quantas vezes já aqui falei do Brel, mas todas quantas tenham sido foram ainda e sempre poucas para começar a fazer-lhe jus.
Tenho a certeza: a música do Brel pode salvar uma vida, pode curar um Homem de tudo. Aquela voz cheia, grave, cinemática, cinematográfica e teatral, tão perfeitamente protagonista no que se imagina um palco a preto e branco, os instrumentos etéreos, incomparáveis ao homem, apesar de belos. Fecho os olhos e a voz do Brel é tudo, prometendo que de Homens e incertezas e esperanças todos temos medida semelhante. Como dizia o Bukowski, «Estamos todos eivados de loucuras e fealdades várias das quais não nos apercebemos mas das quais toda a gente ao nosso redor se apercebe.» E o Brel vai entoando:
Quand’on a que l’amour
Pour unique raison
Pour unique chanson
Et unique secours
O texto dá o mote e a orquestra vai-se entusiasmando, enrubescendo, cavalgando a voz impetuosa do Brel, deixando-se enlear no sonoro poema, naquele premente abraço que as suas palavras prometem sempre, naquele calor de cigarros e cafés misturando-se com as vozes e o vapor e a vida enevoando a noite à cidade.
Quand’on a que l’amour
Pour tracer un chemin
Et forcer le destin
A chaque carrefour
A voz, muito humana e honesta, que poderia tão bem ser a nossa, circulando como a vida, entre a melancolia e a esperança, crescendo depois, heróica, até ao enfatuamento que, no fim da música, tanto pode resultar em concretização como passo último antes da fragmentação solipsista da insónia. Não o sabemos nunca.
Porque a música do Brel é da mesma matéria que se faz a vida. Ou talvez a vida seja da matéria que se faz a música do Brel, arriscar-se-ia dizer. O piano dança, enlaçado com a voz encorpada do belga, na intimidade que traz as cinturas próximas uma da outra, as bocas juntas.
Je creuserai la Terre jusqu’après ma mort,
Pour couvrir ton corps d’or et de lumière.
Je ferai un domaine où l’amour sera roi,
Où l’amour sera loi et tu seras reine.
Nada mais, nada menos. A inquietação do melhor humanista, os desejos do maior sonhador, as efabulações mais desmedidas e originais, mais apaixonadas ou mais iludidas, para o bem e para o mal. E os precisos mesmos medos que se podem fazer abismo.
Em três minutos da música do Brel cabe o Mundo, uma total compreensão da vida, das coisas dos Homens, um olhar tão esclarecido, sem nunca ser descomprometido ou distante, sobre quem vive e quem viveu, quem ama e quem amou. Em poucos acordes, num punhado de versos, um tratado sobre as relações humanas, em todos os seus tons e transposições, expostas no mais belo dos peitos nus, cartografia à flor da pele.
Hugo Picado de Almeida