Uma destas noites sonhei que andava pela cidade um homem que não fazia senão envolver-se em cenas de crua pancadaria com as estátuas de bronze. Abeirava-se delas, cuspia-lhes cuspo ou uma injúria, arregaçava as mangas e disferia nelas golpes de punhos violentos. Ao cabo de algumas investidas, os nós dos dedos ensanguentados, inebriados em vinho de Bordéus, pareciam devolvê-lo à consciência, e ele afastava-se, condoendo-se das feridas.
A acalmia acalmava-o pouco, apenas até ao momento em que dobrava uma esquina e encontrava outra estatuinha ou estatuorra que o fazia pôr-se em mangas de camisa, de casaco no chão, sovando o metal e, bem assim, os dedos flagelados, encristados — não de crista, mas de Cristo seviciado. Fê-lo durante dias, semanas, durante meses. Ia deixando vermelho esborratado, como um fraco Pollock, sobre o ouro-esverdeado do bronze.
Um dia, um velhote que já há tempos o observava vergastando os digitais de encontro à arte pública pousou-lhe a mão no ombro, sustendo a respiração a um punho em voo de flaps cerrados. Trazia o cabelo desgrenhado, como que preservando nele o testemunho de anos mais ou menos vividos:
— Não perdeu já sangue bastante? Às estátuas não as pode vencer. — aconselhou em voz discreta.
— É precisamente por isso que devo continuar. — o homem terá dito algo mais, mas o retomar daquele boxe de sentido único abafou-lhe a voz.
Quando acordei, tive a certeza de que lá atrás, ainda no sonho, o homenzinho continuará a agredir todas as estátuas que encontre pela frente.
Hugo Picado de Almeida