Qualquer um de nós que já se tenha sentado no sofá da sala, em frente à televisão ligada, com um livro aberto no colo, sabe que não está a fazer nada mais do que a iludir-se na sua boa vontade e coração benemérito. Essa é uma batalha que, antes da televisão disparar o seu primeiro tiro de luz, o livro já perdeu. Pode ser que ele resista cinco minutos, pode ser que resista quinze, mas vai inevitavelmente ser fechado, porque a televisão exige algo que os livros não exigem: que obedeçamos a um ritmo de leitura (da imagem), em vez de sermos nós a defini-lo. O livro pode ser parado a qualquer palavra; a narrativa da televisão, não.
Marshall McLuhan fala-nos, no seu Understanding Media: the Extesions of Man, do mito de Narciso, onde o belo jovem grego se afoga nas águas que devolvem a sua imagem, apaixonado por aquele ser que não reconhece como ele próprio. Segundo McLuhan, isto pôde acontecer pelo facto de Narciso – que sintomaticamente advém do termo grego narcosis: “entorpecimento” – se ter convertido num servo do meio. Ora, com a televisão acontece-nos o mesmo. A ditadura do flash dos ecrãs, a imagem em movimento perpétuo apenas para esconder o facto de que é composta por frames quietos, obriga-nos a olhar, e a olhar sempre, num regime de pura servidão. A televisão desligada torna-se inútil e incómoda, e provoca em nós a mesma surpresa e desnorte que um escravo sente quando, subitamente e sem explicação, é posto em liberdade. Prova de verdade? Narciso nunca se poderia ter afogado nas páginas de um livro que o descrevesse.
O livro liberta e ensina; a televisão prende, entorpece e convence. É por isso que os políticos – ao contrário dos filósofos – nos falam na televisão, ao invés de nos escreverem livros. O que está em jogo é o espectáculo e uma disputa pelo olhar; a concentração na visão para não fazer notar que as ideias são vazias, e que só a presença num território visual – o território da memória – importa. McLuhan sempre o disse: «o meio é a mensagem» (mas também a «massagem»!).
Hugo Picado de Almeida