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Sim, sou uma bandeira

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Há quem critique as bandeiras francesas nas redes sociais, dizendo que, então, deveríamos igualmente usar a libanesa, a palestiniana, entre outras. Peço desculpa, mas não.

Importa que, em momentos como este, não cometamos o erro de querer ser mais solidários do que os outros, acabando por não ser nada que valha a pena designar. Acaso não colocariam todos bandeiras portuguesas no perfil se os atentados se dessem em Lisboa? Pessoalmente, Paris é-me mais próxima do que Beirute, e França mais cultural e emocionalmente familiar do que a Palestina. Mais do que isso: depois de Lisboa, Paris é a cidade com mais portugueses no Mundo. Mais do que o Porto, mais do que qualquer outra cidade em Portugal. Todas as vítimas são obviamente a lamentar e a respeitar, mas nos limites das possibilidades individuais, honramos as que mais próximas nos são. Na verdade, elas tornam-se símbolo que todas integra, e não excluem as demais — curiosa inversão: os que propalam as honras totais acabam por ser publicitários da divisão; os que se revelam contra as bandeiras são os que mais ferozmente as tomam pelo seu lado divisor.

Por tudo isto, e se lamento as vítimas dos extremismos em qualquer parte do Mundo, peço desculpa também, mas Paris e a França são para mim, para a minha cultura e para a minha história pessoal, mais do que sou do que Beirute. Pela mesma razão, as famílias enlutadas no Líbano reclamam para si a sua bandeira no Facebook: para elas, mais importantes são os seus filhos mortos do que os que perderam a vida nas ruas da Europa. E isso é apenas natural e compreensível.

Em momentos como este, é preciso ter cuidado e não apontar como hipocrisia a identificação maior que os outros sentem. Afinal, estamos todos a defender o mesmo, em luto pelas mesmas razões, e mais vale fazer um pouco do que acabar a não fazer nada. Cada um fará o seu luto à sua maneira, mas não devemos esquecer o que em jogo está aqui. As vítimas de um dos maiores atentados de que há memória na Europa merecem um pouco mais.

Hugo Picado de Almeida

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Contigo, França

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Hediondo. Repugnante. Execrável. Apenas algumas das palavras – arriscando passar por diminutivos – que podem começar a retratar este 13 de Novembro de 2015.

Seio da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, cidade do amor, Paris levanta-se hoje como ferida aberta no coração da Europa. O momento, agora, é o de estar com a França e com os franceses, e de não nos permitirmos esquecer que por detrás dos números havia rostos e vidas. Desejos e famílias. Pessoas como nós que inusitadamente foram expostas a um terror sem par e que espero que nunca mais ninguém chegue a conhecer. Que o facto do acontecimento nos chegar pelos títulos dos media no lugar de balas não nos permita sentar a assistir à distância. É também o momento para tomarmos consciência de que o ataque o foi sobre cada um de nós e dos nossos países. Sobre os que defendem a Paz, a Igualdade e a Tolerância. Sobre a nossa sociedade e o nosso modo de vida. Sobre a Liberdade.

Outras reflexões surgirão depois. No imediato, fica no amargo da boca a noção de que a violência é subvalorizada, quando talvez seja ela mais do que nada a gizar o nosso mundo, e quando é ela o principal desejo nascido da revolta enlutada que se sucede aos atentados. Sei bem o quanto custa a um pacifista como eu admiti-lo.

Hugo Picado de Almeida

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A direita do outro lado do espelho

No famoso filme Goodbye, Lenine, um filho faz de tudo para que a mãe, recuperando após um coma, continue a acreditar que a União Soviética continua a existir.

Em 2015, em Portugal, sítio extraordinário onde as coisas sofrem sempre mirabolantes reviravoltas, PSD e CDS, pai e mãe de um país ainda em coma, fazem de tudo para nos fazer acreditar que afinal são eles próprios os paladinos da esquerda, os legítimos representantes do povo, os salvadores da nação — ainda que, segundo os próprios, o saldo destes quatro anos fosse mais positivo antes das eleições do que no minuto posterior –, numa inversão inesperada que só a confusão pânica do actual Governo pode começar a explicar.

Não digamos, porém, que a coligação de direita é um pântano de mentiras, se nos basta afinal dizer que é um charco de contradições.

Passos fala em revanchismo dos partidos de Esquerda, mas abandona o púlpito no seu último discurso enquanto Primeiro-Ministro dizendo que não contarão com PSD ou CDS para aprovar nenhuma medida. Percebo agora o que este mesmo Governo entendia pelo “sentido de Estado” e a “responsabilidade democrática” que pedia ao PS na anterior legislatura.

Já Luís Montenegro, para não ficar atrás na oralidade disparatada que um dia lhe poderá abrir as portas de um futuro executivo, fala no derrube do “Governo do Povo”, algo que creio que a direita nunca se tinha lembrado de reclamar para si, tanto ou mais interessante quando se constata que 124 deputados serão sempre mais deputados do que 104, por muito que isso custe a calcular. Sempre se soube que Passos Coelho e Paulo Portas não falam a mesma língua da Democracia e da Constituição, mas não deixa de ser uma bizarria que olhem para uma maioria parlamentar e que consigam apelidá-la de “golpe de Estado”.

Idiossincrasias de um Portugal de fanáticos em pânico, como só isso poderia permitir a Paulo Portas dizer que “há portugueses que gostariam de ver os seus votos respeitados”, de onde se deduz que há direitos que valem apenas para os portugueses que votaram na coligação de direita, certamente portugueses de outro calibre. Portugueses, isto é, cujo voto valerá certamente mais do que o dos restantes. Os outros portugueses, aqueles eleitores que votaram na coligação de esquerda, e que por sinal acabaram por constituir a maioria, são um género diferente e muito particular de eleitores — entenda-se, eleitores cujo voto não deve ser respeitado.

Começássemos agora a respeitar maiorias e sabe-se lá onde é que isto poderia parar. Corria-se o sério risco da emigração disparar, do desemprego subir, de empobrecermos as famílias e falirmos as empresas. Felizmente que nos escapámos a tão triste sorte nos últimos quatro anos.

Hugo Picado de Almeida

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Queria escrever um poema de palavras erradas

Queria escrever um poema de palavras erradas
Para que assim soasse original.
Sem o açúcar bolorento dos termos que os que aspiram a poetas têm como preferência
Na despensa de onde trazem verbos por imitação;
em pacotes TetraPak e celofane e  formato familiar –
sugestão de apresentação, desconto em cartão −
Ideias em pó, instantâneas no preparo,
De juntar água ou levar ao microondas –
E em aquecimento rápido, perfurando a película sem descongelar.
Sem o ritmo arrematado num leilão de segunda escolha onde os lances sejam feitos para perder.
Sem os pés montados nos bicos para sublimar palavras que não as traduz o sentido da sua morada.

Queria escrever um poema de palavras erradas
− incluindo as mais detestáveis e mal sonantes, se a isso se chegar −
Porque as certas foram destituídas de valor
Quando a poesia se deixou cair nas mãos dos maus poetas.
Porque os maus poetas não têm nome mas a camuflagem dos bons.

O problema da má poesia é esse: fazer-se das mesmas palavras que a boa,
E assim não ser sempre possível destrinçá-las.
Não raras vezes, a má poesia tem também a preferências dos maus leitores,
Mais numerosos do que os demais, e que dão fôlego às leis do mercado.
E o mercado é como o exército: se às vezes necessário, é também o fim de tudo o resto.

Queria escrever um poema de palavras erradas,
Mas acertadamente desacertadas,
Tão vulgarmente desperdiçadas, porque
De palavras ao acaso, agitadas no saco do sorteio intelectual, estão as páginas dos livros pejadas,
Os blogues infectos e os cadernos colados com a lama do petrolífero derrame que entaramela asas e bocas por igual.

Queria escrever um poema de palavras erradas, enfim e ao menos,
Para que não se confundisse com os vossos.

Hugo Picado de Almeida

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Encore

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Ao fim de mais de duas horas de voo, depois de chocalhado por alguma turbulência, o avião tocou o solo, o trem de aterragem chiou para acusar a violenta carícia, os travões abraçaram-se aos pneus e, eventualmente, o aparelho acabou a deslizar amenamente pela pista. Ao longo da cabine, emergiram aplausos. Daí a nada, saía do cockpit o piloto. Dobrava-se em vénias e sorrisos; às palmas foram adicionados cânticos coloridos e ramos de flores ruidosas. Alguns passageiros levantaram-se para acentuar a sua humildade e enaltecer a perícia do comandante. A chefe de cabine tentou alertar para que o sinal de cintos de segurança ainda se encontrava ligado, mas rapidamente foi silenciada por um bouquet de girassóis lançado da quinta fila. O público entusiasmou-se quando o co-piloto começou a distribuir autógrafos, enquanto ao comandante se estendiam bebés que convinha beijar.

Um dos comissários de bordo iniciava já o desembarque quando tudo finalmente descambou. Em uníssono, o público pedia “bis”, e as portas tornaram a ser fechadas, o piloto reentrando no cockpit, pronto para o seu encore. Não ouvi ninguém exclamar «brace, brace», mas prontamente me agarrei às pernas. Os aviões são a única dádiva dos céus, mas ainda assim convém ter alguma calma.

Hugo Picado de Almeida

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