Textos

27 de Janeiro

O tempo, que passa sempre e sobre tudo, não deveria passar sobre o Holocausto. Fica a sensação de que um dia isso poderá, tornando as mós uma e outra vez, esfarelar a memória até dela já não restarem senão as migalhas fragmentadas que de um sopro se arrancam dos livros de História. É por isso que os cadáveres devem ser vistos, de preferência à hora do telejornal e à mesa de jantar, para que nos façam o mal que devem.

É por isso que as imagens repetidas devem ser vistas com cuidado, que uma e outra vez sobreviventes e chefes de Estado se encontrem em Auschwitz, que as velas sejam acendidas uma e outra vez. Para que o tempo, que passa sempre e sobre tudo, não passe sobre o Holocausto.

Um dia já não haverá sobreviventes do Holocausto, mas todos terão morrido em Liberdade.

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Livros, Textos

Livros ao kilo

img_20170128_212822_885O passeio de sábado pelo bairro revelou a surpresa de uma feira de livros usados no Centro Cultural que fica paredes-meias com a igreja e o campo de futebol. Lá dentro, o grande salão e o seu palco eram somente mesas e mesas escondidas por um invejável e talvez invencível império de livros. Postos de lado os corredores em alemão e em luxemburguês, refugiei-me durante uma boa hora no canto dos autores clássicos franceses. A venda era ao kilo e barata. Não fosse o caso de um dia ter de os fazer atravessar países, não teria trazido apenas estes. Bom… Talvez lá volte amanhã.
Hugo Picado de Almeida

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Ciência, Cultura, História, Pensamentos, Textos

Entre Baikonur e Kourou

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Lançamento de foguete em Baikonur (fonte: cabinflooresoterica.com)

Sempre me fascinaram os nomes das coisas, e desde que me recordo que determinadas palavras, sem que eu saiba inteiramente destrinçar a razão, mas certamente com raízes na ortografia e na fonética, me espantam e seduzem. E sobre tudo isso, a dúvida da origem, o desconhecimento posto em porquês.

Que um russo seja um cosmonauta e um inglês seja um astronauta não me parece irrelevante nem um mero acaso linguístico. Nem me parece, sobretudo, que deva ser descartado como facto político. Assim como não é igual um centro espacial em Baikonur, no Cazaquistão, ser um cosmódromo, e o mesmo centro, em Kourou, na Guiana Francesa, base da Agência Espacial Europeia, ser uma base de lançamentos espaciais ou, mais claramente ainda, um espaçoporto (usado no Brasil, em tradução directa do inglês spaceport).

Que um lado do mundo tenha optado pelo latino spatium (espaço, no português) para se relacionar com o Universo fora da Terra, e que outro tenha optado pelo grego kósmos (cosmos, no português), poderá ser sobretudo influência cultural e geográfica, mas talvez seja mais do que isso. Por que o spatium se refere à distância, à área entre diferentes pontos, e o kósmos se refere à ordem, ao governo, à estrutura das coisas.

Serão os russos mais contemplativos da harmonia do Universo, mais formais quanto às suas estruturas governativas e admiradores da ordem, ao passo que os ocidentais, berços materiais do capitalismo, mais afectados pela sensação da distância e assolados pela incapacidade do toque?

Afinal, com Gagarin, os russos foram os primeiros a contemplar de perto os astros, mas foram os norte-americanos, nos pés de Armstrong, os primeiros a ter a necessidade de tocar-lhe.

Hugo Picado de Almeida

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