Pensamentos, Política

A magia do em diferido

O em directo está muito bem, mas se querem mesmo saber, eu talvez preferisse o em diferido.

Penso muitas vezes nisso, ao ver a repetição de um jogo de futebol. Penso nisso sobretudo ao ver aquele jogador a festejar o 2-0, sem poder imaginar que daí a 45 minutos estará a chorar uma derrota por 2-3, com a consequente eliminação de uma qualquer prova.

Peço ao leitor que suspenda na consciência a magia do directo e as surpresas do ao vivo, os inesperados da vida em acontecimento, e que me acompanhe enquanto avanço uma hipótese talvez desmiolada: e se a vida se desse ao contrário? Ou só em diferido?

Teria, acredito eu, as suas vantagens. Sabendo das consequências de antemão, haveria coisas que afinal não faríamos e coisas que não diríamos – ou, se fossemos o Cavaco, coisas que finalmente faríamos e palavras que finalmente diríamos. Agiríamos, então, com mais consciência: conhecendo os fins, mais facilmente adaptaríamos os meios.

Abriria, poderemos equacioná-lo, espaços aos abusos dos poderosos, que, conhecendo o desenrolar dos acontecimentos, envidariam esforços para agir de forma a evitar reveses. Mas, simultaneamente, oferecer-nos-ia o em diferido as ferramentas que garantiriam que não os colocaríamos lá, para começar. Evitavam-se as olheiras ao Gaspar, evitava-se a pancadaria dos sequazes do Relvas, as gaffes do Álvaro e, o que não seria pior, que o Passos tivesse de mentir num programa eleitoral.

Hugo Picado de Almeida

Standard
Metro, Pessoas

Histórias a Metro #8

Só os eventos do Metro me forçam a sair da semi-ressaca literária em que me tenho deixado andar, após o término do livro que tive em mãos durante mais de um ano. De momento, tenho-me limitado — o que já não é pouco — ao meu artigo semanal no Palavras ao Poste, deixando aqui o Aliteração em H e os novos projectos de livros a apurar o molho em lume brando, com essa esperança tola de que, se deixados quietos, poderão por si mesmos preparar-me a surpresa de ganharem algum gosto.

Mas as viagens diárias do Metro não se compadecem de ninguém, e atiram-me com tudo aquilo que conseguem desencantar para ver se eu me digno a essa actividade mais ou menos mal-amada e, regra geral, monetariamente pouco lucrativa que é a escrita, pela qual nutro uma paixão talvez pouco racional ou sustentável. Um destes dias, por exemplo, duas raparigas falavam entusiasticamente de um tal cavalo que, palavras delas, «se está sempre a soltar nas boxes — um cheiro horrível! –, e depois assusta-se e foge». Enternece-me sempre a candura das pessoas que falam demasiadamente alto no Metro sobre assuntos que talvez preferissem que eu não conhecesse, se imaginassem que depois eu vinha aqui espetá-los, e não sem algum prazer. Como daquela vez, há bem mais tempo, em que às oito da manhã um rapaz achou que o Metro era um sítio mais oportuno para convencer a namorada, do outro lado do telefone, a dadas práticas sexuais que a moça não parecia ver com bons olhos. Imagino, porém, que ela terá acedido aos quereres do rapaz, pois que a conversa terminou com o acertar da compra de dois chicotes.

Hugo Picado de Almeida

Standard
Crise, Política

Histórias a Metro #7

Beto, ex-jogador e director de relações externas do Sporting, disse um dia que, na crise do clube, todos são culpados. Carlos Silvino, conhecido nos media como Bibi, diz que, no processo Casa Pia, todos são inocentes. Habitualmente dizemos também que de noite todos os gatos são pardos, e no seu O Triunfo dos Porcos, George Orwell também pôde escrever que «todos os animais são iguais», pelo menos a dada altura.

Eu, como sou ciumento, quero também fazer uma afirmação de tão elevado gabarito e tão largo espectro, qual bom antibiótico; um curto conjunto de palavras capaz de prescrever boa cura, ou pelo menos análise, a toda uma realidade de gestos e de gentes. No Metro, todos são visionários. Pronto; disse. Não sei se é a visão do túnel que o inspira, ou o medo do comboio em sentido contrário, ou ainda o receio de que a cidade possa desabar sobre nós enquanto dizemos uma idiotice que seja recordada como nossas últimas palavras.

Passo então a ilustrar: Ontem, seguia na minha carruagem um rapaz que preconizava a curiosa existência de um velhote, algures para os lados do Rossio ou da Praça da Figueira, cujo modo de vida assentava no jogo de raspadinhas. Dizia o jovem que os rendimentos do provecto cidadão ascendiam, por mês, a mil euros ou mais. Gastaria, talvez, cerca de duzentos euros, mas o rapaz concedia ao homem todas as probabilidades, e comentava: «comprando 20 raspadinhas, de certeza que te sai qualquer coisa.» Parecia ao jovem um bom modo de vida, esse de arranjar a vida de moeda em riste, esmola invertida, já não na mão voltada para cima, mas para baixo, sobre superfície lisa, torturando os papelinhos para lhes extorquir uma boa maquia. Bem vendo as coisas, era, segundo ele, uma questão de capital para investir, e tinha razão. Só era pena que aquele jovem visse como bom projecto de vida ser profissional raspador de raspadinhas.

Dei por mim a pensar, porém, que aquele moço de ténis muito coçados na ponta, alargador enfiado numa orelha, mochila dependurada numa só alça, caindo-lhe do ombro sobre a camisola larga, poderia, afinal, muito bem ser um dos empreendedores — e, naturalmente, potencial candidato a usar “CEO” antes do nome — de que Portugal parece estar tão precisado. Ficariam felizes o Relvas e o Passos, o Gaspar e o Álvaro, e na próxima avaliação da troika já seriam felicitados pelas débeis criatividades que tiram os jovens do desemprego, assim como aquele passo de magia, próprio para animar pequenos-almoços num motel duvidoso, que são os estágios na função pública.

Hugo Picado de Almeida

 

Standard