Pensamentos

Bloqueios criativos e a ameaça dos símios

Já me tinha ocorrido que um dia assim haveria de chegar: um dia em que me parecesse necessário escrever algo no blog (porque os leitores gostam de regularidade na escrita quando acompanham este género de plataformas, e porque já não escrevo nele há dois dias), mas em que não me apetecesse continuar a escrever sobre a actualidade, que, convenhamos, é uma escolha fácil, demasiado óbvia, e que não tivesse um outro tema claramente formado na cabeça.

Ocorreu-me, então, e quase em simultâneo, que este blog está em clara falta com a tradição e os ritos que veladamente regem essa camada discursiva que é a blogosfera: ainda não tem um post sobre o bloqueio mental que às vezes acomete contra quem escreve. Ora, um blog não é verdadeiramente um blog até ao momento em que publica um tal texto. Poderemos, hoje, ficar tranquilos e limpar a consciência; este blog atingirá já nas próximas linhas a maturidade.

Dizem os entendidos que a melhor forma de resolver um bloqueio criativo na escrita é fazer uma sessão de escrita automática: folha em branco, caneta ou processador de texto em riste, e escrever sem constrangimentos ou direcção definida; escrever, em boa verdade, como um daqueles indivíduos que às vezes vemos na estrada, a conduzir sem regras, a quem costumamos baixar o vidro e gritar algo como: «Louco furioso! Sai da estrada!»

Devo dizer que a escrita automática já resultou comigo muitas vezes, mas ao pensar fazê-lo desta vez, não pude evitar lembrar-me do famoso Teorema do Macaco Infinito. Permitam-me que o apresente: Um macaco digitando aleatoriamente num teclado durante uma quantidade infinita de tempo acabará certamente por criar um texto qualquer escolhido, como por exemplo uma obra completa de Shakespeare. 

Por estranho que possa parecer, não podemos negá-lo: a lógica está do lado do Teorema. Este enunciado provocou-me, porém, uma convulsão interior como nunca antes tinha provocado. Se um macaco infinito poderia digitar toda uma obra de Shakespeare, ser-lhe-ia notavelmente fácil escrever este blog por mim, com a vantagem de não se deparar com bloqueios criativos. Agora que as filas do desemprego aumentam, corro também eu o risco de ser substituído por um símio vulgar, desses tantos que já se vêem por aí…

 

Hugo Picado de Almeida

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Ficções, Política

A resposta está na literatura

“Agora as provas”, disse a oposição, “e depois a sentença.”

“Não!”, disseram as agências de rating e o Governo de Copas, “Primeiro a sentença, depois as provas.”

“Disparate!”, gritou o povo, tão alto que toda a gente saltou, “A ideia de ter a sentença primeiro!”

a partir de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll

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Crise, Política

O sistema

Um cartaz do PCP na Avenida da República incita-nos a “rejeitar o Pacto de Agressão”. Eu cá acho que o certo – até porque talvez o contrário não seja possível – é aceitar o Pacto de Agressão. Agora, há é que proceder como nas verdadeiras guerras, e dar também, em vez de apenas receber.

Falo-vos, então, da necessidade premente que é a de deixarmos de dar a outra face e começar a dançar a lambada, mas cuidado, apontando apenas a quem deve ser chamado à responsabilidade. Nunca concordei com certezas do género «os políticos são todos iguais», e talvez ainda hoje não concorde. Penso, no entanto, que a política os pode, efectivamente, tornar iguais. A política, como encenação igual à de qualquer espectáculo – teatral ou, talvez, até de malabaristas -, deve travestir-se, maquilhar-se, deixando a pele em palco se tanto for necessário para manter a ilusão. Que ilusão? Neste momento, a ilusão de que pelo voto decidimos e mandatamos alguém para defender os nossos direitos.

O problema central é esse: pensarmos viver em democracia quando, na verdade, vivemos no capitalismo; sistemas que adorariam poder viver em conjunto mas que se odeiam de morte. E por nada isso nos deve causar estranheza. Quantos homens e mulheres não juram que se amam e, um mês após consumado o casamento, juraríamos nós que parecem ter declarado uma fatwa um ao outro?

Tenhamos a certeza de uma coisa: nenhum Governo europeu está a tentar resolver a crise.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Política

O Círculo e o Circo

O Círculo Polar Árctico roça um canto do Hospital Sta. Maria, em Lisboa. Se não roça, disfarça bem.

Ontem, ao passar pelo dito Hospital ao fim da manhã, havia um montículo de neve, suficientemente grande para encher duas mãos postas em concha mas insuficiente para muito mais do que isso. Esta manhã, quando lá voltei a passar, ia precisamente a pensar nesse improvável ajuntamento de cristais, certo de que ele já não estaria lá e imaginando já uma voz dentro de mim a dizer: «Esperavas encontrá-lo ainda aqui? Ora, toma!», e estava até já decidido na minha mente delirante que ele ergueria o punho ameaçador para mim, tal como o fazem as vítimas do “Grande Urso” dos anúncios do Metropolitano de Lisboa.

No entanto, como pronto castigo para as minhas suposições, a tal porção de neve lá se mantinha, ainda que o monte tivesse sido agredido e se apresentasse agora desfeito aos olhos dos transeuntes. Não ouso sequer imaginar que espécie de neve resiste com tanta teimosia num pedaço de alcatrão de uma Lisboa de temperaturas ainda razoáveis para humanos mas insuportáveis para a neve, sobretudo quando isolada assim em ilhas, e apressei-me a sair dali.

Não acredito no destino, mas não posso deixar de me admirar com a coerência que muitas vezes liga os acontecimentos mais aparentemente díspares. Ao ligar o computador, deparei-me então com a notícia de que, na Madeira, qual território independente, a lei parlamentar foi alterada. A partir de agora, “os votos de cada partido presente são contados como representando o universo de votos do respectivo partido ou grupo parlamentar”. O PSD pretende, assim, garantir que, mesmo com deputados ausentes, nenhuma das medidas da oposição seja aprovada. Confesso que a minha veia democrática, subitamente acometida por arrepios que, na Madeira, não são nunca causados pela temperatura mas sim pelo aspecto circense de todas as suas instituições, me gelou um bocadinho.

Ocorreu-me, então, que se o Círculo Polar Árctico se tivesse deslocado para passar tangente ao Hospital Sta. Maria, seria de todo natural que o clima político dessa “Pérola do Atlântico” se tornasse também ele gélido, agreste como os suspiros siberianos que dão forma ao Inverno.

 

Hugo Picado de Almeida

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Livros

O Cortejo

Hoje em dia tudo está ligado, mas as plataformas são mais que muitas. O perigo, hoje, não é tanto o de não estar informado, mas sobretudo o de estar tão informado que algo acaba por nos passar, inevitavelmente, ao lado; a máquina na rede que tudo apanha está à nossa frente, nas nossas mãos sobre o teclado, e não dentro de nós.

Assim, tentando potenciar aquilo que me cabe a mim, primeiramente, dar a conhecer – e com um pedido de desculpas aos mais cautos ou mais sortudos internautas que já avistaram esta informação -, aproveito este espaço para anunciar a publicação de um livro de ficção da minha autoria, intitulado O Cortejo (editado pela Chiado Editora). Para o adquirirem poderão desde já contactar-me directamente a mim ou, em alternativa, esperar que chegue às livrarias; ainda não há data certa, mas espera-se que brevemente.

Convido-vos a seguir a respectiva página no facebook (esta aqui) para que possam ir descobrindo mais sobre a obra, e receber as notícias sobre a chegada às livrarias, sessão de lançamento, etc.

Numa tentativa para vos aguçar a curiosidade – que parece ter essa afinidade com os objectos cortantes – deixo-vos aqui o texto da contracapa, escrito pelo Bruno Falcão Cardoso:

«Quando, pela manhã, Amin sai à rua para dar início à sua rotina elucubrativa de escritor, depara-se com uma intrigante dupla de indivíduos que lhe captam a curiosidade. Ao encetar uma perseguição àquelas duas misteriosas figuras, que logo descobre serem personagens suas, Amin vê-se mergulhado numa teia de complexas idiossincrasias, onde a realidade e a metáfora se unem para teatralizar a composição do sentido.

Enredado por personagens mirabolantes e surpreendentes, Amin perde-se por entre o labiríntico mundo da palavra e da escrita, cruzando-se com o azarado Yaniv, a atraente Anoush, e Emil, o coxo.

De um humanismo assinalável, arrebatado no crivo de Hugo Picado de Almeida e extensível à sua obra, O Cortejo compõe de forma sublime a angústia e a necessidade da criação artística, o sofrimento íntimo e a frustração amorosa, onde o mundo do ficcionado se funde no sentimento à flor da pele.

O Cortejo retrata o mundo das nossas vidas, pulando a fronteira superficial que o sentido comum encobre a si mesmo, e deixando à mercê do leitor o âmago espremido de uma visão que poderia apenas ser narrada, pois “Afinal, uma imagem só poderá valer mais do que mil palavras se houver alguém para as escrever“.»

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Política

Estranheza

«There are children playing in the street who could solve some of my top problems in physics, because they have modes of sensory perception that I lost long ago.», J. Robert Oppenheimer

Suponho que na sociedade aconteça algo próximo. Não é muito difícil saber que decisões são mais benéficas para a colectividade. Não é extraordinariamente difícil perceber quem sofrerá e quem beneficiará da medida X, ou por que não se deve adoptar o plano Y. E tanto é assim que qualquer oposição a qualquer Governo tem em carteira as melhores soluções para resolver todo e qualquer problema, como o posto avançado de um hospital de campanha. A resolução para os problemas do Homem está, em larga medida, ao alcance do Homem, e não apenas do Homem-génio, caso em que estaríamos condenados, mas sim do Homem honesto.

O problema é que, tal como aconteceu com Oppenheimer, há na cronologia das vidas políticas um momento de viragem, nem sequer de embrutecimento, como seríamos tentados a pensar, mas sobretudo de alienação perante os ideais – eufemismo para a desonestidade mais primária -, fractura acelerada como quem parte de comboio para fugir ao passado, que os impede de percepcionar a realidade tal como ela é – há interesses mais elevados, devemos humildemente compreender, e deixar a estulta alucinação que nos faz imaginar que as coisas seriam mais bem resolvidas de outra forma, naturalmente a mesma loucura que acomete contra as multidões dotadas de razão, surpreendidas diariamente com a imbecil pesporrência de quem as governa.

Como escreveu Sartre em A Náusea, através do seu protagonista Antoine Roquentin, «É isto que é preciso evitar; é preciso não achar estranho o que não tem estranheza nenhuma.»

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Pessoas

Achas para a fogueira

Há quem o condene por assassinato depois de fartos banquetes – como se lhe coubesse o papel de carrasco da gula -, há quem o afirme rejuvenescedor, mesmo purificador, há quem o considere prejudicial se em demasia, há quem o tome diariamente, ou dia sim, dia não, e haverá ainda, certamente, quem não o tome de todo, por vontade própria ou por manifesta impossibilidade. Falo-vos, naturalmente, do banho, actividade a que me dedico diariamente, não apenas por motivos de higiene mas também por razões intelectuais. A banheira pode ser o espaço de reflexão por excelência. Ainda assim, por interessantes que possam ser, não é das minhas estadias na região da casa onde habitualmente habitam as banheiras que vos quero falar.

Hoje, na rua, ali para os lados do El Corte Inglés, ouvi uma mulher dizer ao marido: «Também ninguém te diz para tomares banho todos os dias, mas… pelo menos usa um lenço de papel». Obviamente não sei, nem pretendo saber, a que latitude do corpo era recomendado o uso do tal lenço, mas numa altura em que as agências de rating dizem que fazemos parte dos PIIGS e que ameaçam considerar-nos “lixo”, era de todo dispensável dar-lhes razão.

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Política

Eufemismo matemático

Há uns anos atrás roubaram-me um saco de desporto de um balneário. Quando fiz queixa na polícia, o agente de serviço disse-me que não podia escrever na queixa “roubado”, nem mesmo “furtado”, e explicou-me que aquela força de segurança pública preferia usar o termo “subtraído”, que não partilhava da carga negativa dos restantes e mais habituais vocábulos. Portanto, ficou registado que me foi subtraído um saco de desporto, como se isso se destinasse a fazer-me sentir melhor. Afinal, não tinha sido roubado: apenas me tinham subtraído, numa bela operação aritmética, algo que me pertencia. Imagino que o mesmo se diria se um acidente de comboio me tivesse subtraído um braço, ou se o medo um dia me subtraísse a coragem. Se calhar a própria morte é apenas, eufemisticamente mais agradável, uma mera subtracção da vida.

Pensava eu nisto, porém, quando (mais uma vez) ouvi o Governo falar na “necessária subtracção dos subsídios de férias e de Natal”. Lá vinha de novo a malfadada subtracção, como na minha queixa na esquadra em que era proibido falar de roubos. O que aquele polícia me explicou, há uns anos atrás, tornava-se agora claro: Se não chamarmos as coisas pelos nomes, pode ser que as pessoas não dêem por elas.

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Livros, Política

Mapa, Monopólio

Ontem, o Ministro da Economia, qual médico-legista, declarou a morte da crise. Quatro horas depois, disse que afinal não, que o que ele queria dizer era que o fim da crise estava a começar, que em 2012, portanto, a crise começava apenas a definhar.

Os jornalistas, munidos de uma bateria de politólogos e comentadores de naturezas várias, apressaram-se a aprisionar a gaffe mal disfarçada nas suas peças, fazendo-a entrar na corrente que gere a memória colectiva, mas eu dei por mim mais atento a outra situação: em quatro horas, escassos 240 minutos que rapidamente se perdem se não tivermos o cuidado de fechar esse ralo por onde o tempo se esvai, Álvaro Santos Pereira passou de médico-legista a clínico geral, ou talvez mesmo a oncologista, e notemos que imediatamente antes disso era Ministro – nem sequer da saúde, mas da Economia. E ainda dizem que não há mobilidade na função pública.

Acredito, porém, que o Ministro não tenha feito estas declarações por mal. A verdade é que não percebeu bem as regras do jogo que estamos todos a jogar. O mapa do conto de Jorge Luís Borges, tão extenso e detalhado quanto o próprio território que devia representar, assentando sobre ele, não era afinal um verdadeiro mapa, percebemo-lo hoje, mas sim um tabuleiro de Monopólio. O Ministro, como todos os que ainda esperam que a crise possa ser resolvida dentro do actual paradigma económico-financeiro, não perceberam ainda que este é um Monopólio diferente – mas mais Monopólio do que o jogo -, onde só alguns têm direito a lançar os dados e a influenciar pelas palavras, porque o sistema só funciona enquanto alguns aguardarem sossegados, mudos na casa da prisão – e é vital que lá cheguem com a conhecida ressalva imposta pelo jogo: «Vá directamente, sem passar pela casa da partida e sem receber 2.000$00».

 

Hugo Picado de Almeida

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