Pode, talvez, conhecer-se um povo pelos detritos que se encontram nas ruas da sua cidade.
Pela sua ausência, compreende-se a organização rigída e o respeito pela comunidade de um povo. Pelo seu excesso, descobre-se o laxismo e o egoismo das suas gentes.
Ontem, numa rua de Lisboa, encontrei algo que me fez abrander o passo e pegar no telemóvel para a fotografar em andamento: uma carta de jogar, um rei de copas, mal-tratada e pisoteada, pronta a rasgar-se por não ter mais de que se valer. É que as cartas são como as ovelhas; é raro encontrar uma sozinha e, quando assim é, importa questioná-las. Mais ainda quando é um rei — de copas, não de ovelhas, que não se lhes conhece apetite pelas monarquias. Quando o Rei vai nu, ainda alguém o poderá admirar. Mas se a multidão atirou o Rei da caleche para o chão, não restará senão pisá-lo e repisá-lo; a multidão deglutindo-o nesse estômago de serpente em cortejo.
Será, talvez um resquício da manifestação do dia 15. Será, talvez, o rei o nosso detrito, e então será preciso varrê-lo e deitar lixívia ao sítio onde ele se deitou. É que os reis, quase sempre, deixam mancha, e é um sarilho para, depois, ver a camisa novamente limpa.
Os reis não se devem esquecer de que o povo prefere sempre o rei que se segue. Como na canção de Brel, livremente confiscada ao seu sentido inicial, Je te raconterai / L’histoire de ce roi / Mort de n’avoir pas /Pu te rencontrer. Substitua-se a amada por encontrar pelo povo, sempre deixado órfão e traído, e o sentido será claro.
O Rei está morto! Viva o Rei!
Hugo Picado de Almeida