Crise, Pensamentos, Política

Os reis são essa coisa que deixa mancha

Pode, talvez, conhecer-se um povo pelos detritos que se encontram nas ruas da sua cidade.

Pela sua ausência, compreende-se a organização rigída e o respeito pela comunidade de um povo. Pelo seu excesso, descobre-se o laxismo e o egoismo das suas gentes.

Ontem, numa rua de Lisboa, encontrei algo que me fez abrander o passo e pegar no telemóvel para a fotografar em andamento: uma carta de jogar, um rei de copas, mal-tratada e pisoteada, pronta a rasgar-se por não ter mais de que se valer. É que as cartas são como as ovelhas; é raro encontrar uma sozinha e, quando assim é, importa questioná-las. Mais ainda quando é um rei — de copas, não de ovelhas, que não se lhes conhece apetite pelas monarquias. Quando o Rei vai nu, ainda alguém o poderá admirar. Mas se a multidão atirou o Rei da caleche para o chão, não restará senão pisá-lo e repisá-lo; a multidão deglutindo-o nesse estômago de serpente em cortejo.

Será, talvez um resquício da manifestação do dia 15. Será, talvez, o rei o nosso detrito, e então será preciso varrê-lo e deitar lixívia ao sítio onde ele se deitou. É que os reis, quase sempre, deixam mancha, e é um sarilho para, depois, ver a camisa novamente limpa.

Os reis não se devem esquecer de que o povo prefere sempre o rei que se segue. Como na canção de Brel, livremente confiscada ao seu sentido inicial, Je te raconterai / L’histoire de ce roi / Mort de n’avoir pas /Pu te rencontrer. Substitua-se a amada por encontrar pelo povo, sempre deixado órfão e traído, e o sentido será claro.

O Rei está morto! Viva o Rei!

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

“Entre l’arbre et l’écorce il ne faut pas mettre le doigt”

Nos últimos dias temos tido uns amigos franceses em casa, e desde ontem que notei algo curioso. Com a mente focada no francês, muitas das conversas distantes que os ouvidos me captam na rua, no Metro ou no trabalho, daquelas suficientemente distantes para que dificilmente se consiga descortinar as palavras, todos esses diálogos longínquos me parecem ser feitos em francês.

Há, claro, outra hipótese a pôr: a de que todos os lisboetas se tenham tornado perfeitos falantes de francês, e que façam questão de se expressarem na língua da alta cultura (e da alta-costura, se os autores fossem outros): Balzac, Victor Hugo, Voltaire, Rosseau, Montesquieu, Flaubert, Baudelaire, Dumas (pai e filho) e tantos, tantos outros. Enfim, talvez todos leiam em voz alta as desventuras íntimas do Marquês de Sade; o ambiente sócio-político parece propício a isso, entre invectivas de cidadãos para partidos e destes entre si, ou da mais recente altercação de boudoir entre amantes da coligação.

 

Hugo Picado de Almeida

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Música, Pensamentos

O tio de Boris Vian

Não sei se Boris Vian tinha tio, nem sequer fui à procura. Gosto de pensar, porém, que sim, e que esse tio era aquele cuja vida se narra na música La Java des Bombes Atomiques, que o escritor francês escreveu e cantou, e que podem ouvir aqui.

Nela se conta a história do tio do narrador, um fabricante artesanal de bombas atómicas que têm a particularidade do seu raio de acção ser de apenas 3 metros e 50 centímetros. A letra vai circulando entre a mesa do almoço, onde o tio conta aos sobrinhos as complicações e os intrincados procedimentos da manufactura das bombas A e H, e a pequena oficina nos confins da casa, onde as experiências e o aprimoramento dos projécteis explosivos tinham lugar. Reza a canção que, chegando a diversos chefes de Estado a notícia de que as bombas estariam prontas, todos os estadistas correm, ávidos, a visitar a casa do tal tio, para testemunhar o feito. E é então que o tio, qual raposa matreira, pede desculpas, dizendo que a oficina é muito pequena para todos, e cede o seu lugar no interior. Uma vez cá fora, tranca a porta e faz explodir a bomba, ceifando o equilíbrio de que é feita a vida a todos os políticos que ali se encontravam.

O tribunal condena-o mas de seguida absolve-o e o povo aclama-o como novo presidente de França. Afinal, o seu testemunho era sincero:
«Messieurs, c’est un hasard affreux
Mais je jur’ devant Dieu
En mon âme et conscience
Qu’en détruisant tous ces tordus
Je suis bien convaincu
D’avoir servi la France».

Não sei, evidentemente, se Boris Vian tinha tio, mas poderemos talvez sugerir que ele hoje faria alguma falta.

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Metro, Pensamentos

Histórias a Metro #2

Acontece frequentemente apanhar no metropolitano, algures pela linha amarela, duas senhoras de idade assertiva a quem o Metro parece fazer as vezes do bairro, ali se juntando, ora nesta estação ou na seguinte, todo um rol de amigas, primas e outros parentescos femininos. Não sei ao certo de onde vêm nem para onde vão estas senhoras, que geralmente se despedem em paragens distintas, mas conheço as suas preocupações e aquilo que mais prazer lhes dá na vida: os netos.

No outro dia, uma delas contava: «E ele virou-se para mim e sabem o que me disse? “Ó vó, a vida está difícil!”». E todo o ensemble de amigas explodiu em risos e palmas, enquanto, ainda que ninguém pedisse bis, a senhora repetia uma e outra vez aquele «Ó vó, a vida está difícil!», espécie de marca do espírito saudável e do bom desenvolvimento da criança. E como se a cena não me bastasse, o acaso providenciou que no dia seguinte eu as encontrasse novamente, mesmo a tempo de ver outra das comadres exclamar: «Ontem, o meu neto perguntou-me: “Ó vó, eu também vivi acima das minhas possibilidades?”», e dito isto todas bateram os pés no chão, deram palmadas nas pernas e comeram uma barrigada de riso que as poderia até ter indisposto e feito alguém gritar: Há algum médico na carruagem?

Admito que os referidos petizes tiveram a graça do momento, mas há algo que me preocupa; até as mais pueris criaturas já crêem que a culpa é delas; coitadas, também já assimilaram o discurso do nosso salafrário ministerial de que a culpa é de todos, e certamente se arrependerão prontamente daqueles carrinhos que compraram sem precisar — ah!, os malditos gastadores! — ou do crédito que pediram para adquirir, em cómodas prestações, a boneca Rosinha, a tua amiguinha. «Vamos dar as mãos e cantar uma canção», não era, Rosinha? Mas agora quem fica a pagar a crise? Amigos, amigos, negócios à parte, dizes tu sob esse sorriso plástico, não é, Rosinha? A quem te deu a mão não a dás tu agora.

Não! Os pequenos não têm culpa, e não nos deveríamos rir quando eles, antes de aprenderem os números até ao cem, nos perguntam já se viveram acima das suas possibilidades, ou quando, ainda sem conhecerem o alfabeto todo, afirmam que a vida é essa coisa difícil. Entre os petizes, a culpa é daqueles que aparentam ser adultos, como o menino Paulinho, capaz de afundar um ror de dinheiro em dois submarinos para brincar na banheira. Melhor teria feito em comprar um patinho, amarelo, daqueles de borracha. Mas os rapazes sempre preferiram brincar às guerras…

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Livros, Política

A marrã comeu a troika

N’ A Cidade do Sossego, de Nikolai Gógol, narra-se a tragicómica altercação entre dois Ivans (Nikiforovitch e Ivanovitch), vizinhos, outrora amigos, desses de unha com carne, tornados unha contra carne. A contenda, que se inicia com uma injúria decorrente da recusa da venda de uma espingarda, vai escalando por entre uma capoeira para patos, montada e destruída, pelas agressões entre vedações aos cães e petizes alheios, sevícias aos criados de outrem, até que os dois vizinhos recorrem ao tribunal, trocando queixas e pedidos de prisão, e se votam ao esquecimento, evitando-se sempre que possível e, na sua impossibilidade, comportando-se com o maior desprezo perante o outro.

No meio de tudo isto, porém, não devemos esquecer a grande porca de Ivan Ivanovitch, essa marrã castanha que, inicialmente recusada na disputa pela espingarda, iria acabar por irromper pela sala de audiências do Tribunal de Primeira Instância de Mirgorod para, à força de beiços, furtar a queixa do fidalgo Nikiforovitch. Ainda não se lembrou, o Passos, de mandar um dos seus capangas levar pelas bocas mordazes e, não menos vezes, sebosas q.b., tão capazes que já se provaram noutras alturas de resgatar às mais sombrias profundezas os argumentos mais abrolhosos e ababelados, as troikas e os ratings, os mercados, as agências financeiras, a Merkel, o BCE, a TSU e, enfim, a crise ela própria, e de os fazer desaparecer com a efectividade narrativa de Gógol; n’A Cidade do Sossego, nunca mais se ouve falar da tal queixa escrita, e curiosamente, nem da oportuna marrã castanha que nenhum dos funcionários do tribunal se mostrou capaz de deter.

Em Portugal, as gentes querem também ver pelas costas tudo isso; não apenas as crise e a troika, mas também o Governo e as suas marrãs.

 

Hugo Picado de Almeida

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Arte, Música, Pensamentos

Bati palmas à loucura

No sábado à noite, bati palmas à loucura. O concerto de Lotte Anker, Fred Frith e Ikue Mori na Culturgest foi dos espectáculos mais insólitos que já tive oportunidade de ver. Enquanto Lotte Anker tentava tocar saxofone (dela dizem que é das melhores do mundo, mas talvez noutro registo, quando está verdadeiramente a tocar), Fred Frith atirava contra as cordas da guitarra tudo aquilo que tinha à mão: panos, areia, pedaços de metal, caixinhas de lata, pauzinhos chineses; e Ikue Mori ia produzindo sons no seu computador portátil, que variavam entre ruído branco, chuva metálica, estalidos electrónicos que vagamente lembravam o chilrear de pássaros, e todos aqueles tons típicos das velhinhas máquinas de jogos que havia nos salões…

É bem provável que nunca algo me tenha desagrado e fascinado tanto ao mesmo tempo. Como me disse a Inês, «são adultos a brincar com instrumentos como as crianças», e esta pareceu-me uma definição extraordinária. Estávamos, evidentemente, a ver três pessoas loucas em palco, e essa é uma oportunidade que não se deve perder nem tratar com leviandade.

Aplaudo-lhes o esforço e a coragem, e bem assim a loucura, pois durante uma hora não pararam de tocar (ou de fazer aquilo que estavam a fazer com os instrumentos), e nós, deste lado, loucos também, durante uma hora nos mantivemos ali sentados, e no fim batemos palmas e sorrimos. Eles, no palco, e nós, na plateia, todos acolhendo a loucura para tratar aquela performance como um concerto, todos compenetrados no acarinhar de uma mentira descarada para produzir arte, ou algo que a mimetize.

O nosso erro foi esperar um concerto, quando nos devíamos ter preparado para uma performance.

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Pensamentos, Política

A Eterna Política

Cada vez me convenço mais de que o eterno retorno de Nietzsche é coisa bem real.

E não falo apenas daquele casal que todos os dias entra no Metro, pelas 18h15, no Saldanha ou nas Picoas (já não sei ao certo) e que dia após dia veste o mesmo rosto enfadado e fala sempre no mesmo tom irritado, dando muitos estalidos com a língua e sacudindo a cabeça com violência, criticando o chefe, os colegas, os ex-colegas e todo o trabalho, enfim, tomado geral e abstractamente.

Falo também, e talvez sobretudo, de situações de importância mais assinalável e evidente. É possível que os políticos tenham deixado de ser necessários, e por sua própria culpa. Os governos sucedem-se nas suas intervenções, promessas e consequentes traições a um ritmo certo, como se seguissem um guião circular. Quando o Sócrates estava no governo, o Passos defendia que não era possível aumentar mais os impostos, algo que veio a fazer, sendo agora a vez do Seguro dizer que não se podem sobrecarregar mais os portugueses. Quando o Sócrates era governo, dizia que este era o tempo de nos unirmos, o que o Passos e o Relvas não ouviram mas que agora também pedem para si.

Mal para nós, que talvez nunca consigamos escorraçar de vez as crises, mas pior para eles, que acabarão por ser empurrados da cadeira. O demónio do eterno retorno, para eles, talvez seja a promessa da violência, cada vez mais latente.

 

Hugo Picado de Almeida

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11

Hoje, que se contam 11 anos do 11 de Setembro, em que aviões e aeroportos, embaixadas, bolsas de valores e grandes terminais de transportes se preparam para fazer face à ameaça numérica que foi sendo deixada no ar, torno a publicar um texto que comecei a escrever em Nova Iorque, em Fevereiro deste ano, e que aqui publiquei em Março:

9/11 Memorial, Nova Iorque,
27 de Fevereiro 2012,
Hugo Picado de Almeida

«O Memorial do 11 de Setembro, em Manhattan, é o sítio mais barulhento de Nova Iorque, e isso espanta tanto quanto o facto de, na cidade, o trânsito fazer muito pouco barulho. A cidade que nunca dorme não é tão barulhenta quanto se possa pensar.

O Memorial do 11 de Setembro é realmente o sítio mais barulhento da cidade, e essa é a melhor homenagem que se poderia fazer às vítimas. Um memorial silencioso – o mesmo seria dizer, um memorial europeu – no meio de Nova Iorque seria uma ferida aberta; a melhor maneira de sarar a ferida é tornar a sua cicatriz confundível com a própria pele, e é por isso que o World Trade Center manterá o seu nome e recuperará as suas torres. Terá duas a menos, é certo, por respeito às falecidas Torres Gémeas, mas em seu lugar – no mesmo exacto lugar −, surgem agora as duas grandes pools que se, por um lado, mantêm intacto o espaço visual que as célebres torres ocuparam um dia, por outro, mantêm também intacto – se calhar superando-o − o espaço sonoro que elas ocupavam, e dessa formam logram reparar a falta e o orgulho de um país que não pode nem quer parar. É preciso que a economia recupere, e com ela a própria vida, claro.

Na Europa, talvez fosse impossível fazer o que se está a fazer em Manhattan. Não teríamos, provavelmente, cinco novas torres em construção, e dificilmente teríamos uma loja de souvenirs – apesar de toda a decência e respeito que se sente no memorial nova-iorquino.», 5 de Março de 2012

 É esta a forma da América dizer que não perdeu essa guerra que não será nunca possível resolver pela força, e é preciso admirar-lhes a resiliência. Aqui fica, às vítimas e aos heróis.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, Pensamentos

Gato de biblioteca

Sabemos já que este país não é para escritores, que não é para músicos, que não é para actores e ainda menos para escultores, mas que também não é para leitores nem para espectadores, nem para muitas outras pessoas. Que não é para desempregados nem para empregados, e também não para reformados, nem para os que pagam impostos. Será, talvez, um país para políticos, os únicos que se parecem animar grandemente em torno dos acontecimentos que comovem o país.

Outro dia, passando ao frente ao Palácio Galveias, aconteceu espreitar pelo portão do pátio de acesso ao edifício. Lá dentro, sobre a grande laje que atapeta o chão da entrada do Palácio, um gato esperava, sentado, muito quieto, olhando fixamente para a porta fechada da Biblioteca Municipal. Queria entrar, coitado, mas ninguém o deixou.

Afinal, se este país não é para mais ninguém, haveria de o ser para gatos, reaccionários, leitores?
Não é à política aconselhada tanta liberdade. De que lhe valeria evitar que as pessoas lessem se depois o permitisse aos gatos?

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos

Fogachos #6

fogacho s.m. «pequena labareda; chama; (…) sensação de calor que vem à face em decorrência de fortes emoções ou de males físicos; aparecimento súbito e intenso de sentimentos violentos; arrebatamento, assomo; (…) luz súbita no espírito; manifestação momentânea de inteligência; iluminação.» É também o título de uma série de pequenos textos de Baudelaire.

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