Literatura, Livros, Pessoas

Homem-de-escrever

Há dias, a Forbes anunciou uma lista dos autores mais bem pagos do mercado livreiro mundial. Quem surge à cabeça é James Patterson, um norte-americano que em 2011 teve ganhos de 94 milhões de dólares, ano em que escreveu nada mais nada menos do que 14 livros. Sim, senhoras e senhores, 14 livros! Mais do que um livro por mês, quando visto o ano pelo retrovisor. Pasme-se! Pasme-se e corra-se a comprar um par de joelheiras — ou então não, para que o sofrimento e a adoração sejam mais exultantes –, para que possamos deitar-nos por terra, postrando-nos aos divinos pés de tão produtiva cabeça. Dos seus 105 livros, 14 são de 2011, 13 são de 2012, e já estão até prontos três para sair em 2013. E a tendência verifica-se em anos anteriores.

Não estamos, evidentemente, já na presença de um homem, mas sim de uma máquina — máquina de escrever, naturalmente. E James Patterson partilha com as suas congéneres mecânicas o talento: bater texto sobre as teclas. É que as máquinas de escrever despem-se de criatividade, a fim de não introduzirem nos textos que recitam alguma coisa que não lhes pertença; elas são máquinas de precisão. Assim será forçosamente a obra de Patterson: texto batido recorrendo aos mesmo artifícios bárbaros e aos golpes baixo da arte capitalizada, mercantilizada, porque neles não pode empenhar qualquer talento ou criatividade. Não há tempo para isso. Haverá prova melhor de que já não se trata de literatura, mas de mera escrita?

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Pessoas

Escadas e Cobras

As escadas do Metropolitano são uma miniatura da vida.

Há os que sobem e os que descem. Há os que caem, com mais ou menos espectáculo. Há os que correm por elas acima sem dar por nada, há os que vencem cada degrau com as agonias de uma contenda. Há os que sobem sozinhos e os que são ajudados. Há os rápidos e os lentos, os excitados e os tranquilos. Há uns que desistem e se sentam. Há os que param a meio…

A analogia era mais poética quando a pensei. Assim, posta no papel, parece banal e tolamente romântica, desmesuradamente fácil e enjoativamente melosa, mas o que é que se há-de fazer? O senso-comum sempre exaltou a posse de beleza operatória.

 

Hugo Picado de Almeida

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Literatura, Pensamentos

Gaiola procura pássaro solteiro, honesto, carinhoso

Kafka terá escrito um dia: «Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.»

Parecendo surreal, a frase agarra a realidade de forma exemplar. É que raras vezes são os pássaros a internarem-se em gaiolas propositadamente, e os leitores de histórias de espiões sabê-lo-ão bem: o pássaro está na gaiola. A raposa entrou na toca .
Ora, aqui, é sempre a gaiola quem procura o pássaro, ou que o alicia a entrar, dourando as grades para o seduzir, usando dos mais ilustres subterfúgios para o levar à certa. Os pássaros vivem ao engano, a correr, ou a voar, atrás do prejuízo, a reboque do percurso que as gaiolas traçam para si e para eles; são elas que comandam o jogo, são elas que sabem o que sucederá a seguir.

Sejamos, pois, gaiolas. Afinal, mais vale um pássaro na mão, quando o pássaro não somos nós.

 

Hugo Picado de Almeida

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Arte, Crise, Cultura, Televisão

A moeda mata a Arte

Parece que a RTP2 vai fechar brevemente. Mais uma vez o adágio popular se confirma: tudo o que é bom acaba cedo.

Isto, porém, não deve surpreender-nos. Acaso esperávamos que um país que não se preocupa nem com a sua saúde nem com o seu futuro depositasse as suas atenções na Cultura?

E o problema não é de agora; o problema está no agudizar da força com que hoje se pisoteia a Cultura. O problema, uma vez mais, reside no capitalismo e nesse bicho-papão que é o mercado, com a diferença de que este existe, claro. O que fazia da Arte, Arte, era o seu valor estético, o seu valor filosófico, o seu valor, por assim dizer, artístico. Isso, porém, reduz-se hoje a um punhado de indivíduos cujos interesses e sensibilidade — e, porque não dizê-lo, uma certa falta de dinheiro para tomar a Arte noutros valores — por aí os levam.

O mercado da Arte é precisamente aquilo que a destrói.

Novamente, a moeda subverteu tudo. E muitos artistas (e outros que por isso se fazem passar) — não por culpa própria, porque também são humanos e também têm, consequentemente, essas estranhas necessidades de comer e de viver — acabam por sucumbir sob os pesados rodados mercantilistas, assim expurgando a sua Arte daquilo que a caracteriza como tal. Temos, hoje, a sensação de que já não há grandes escritores, pintores ou escultores; ouve-se dizer, mais vezes do que seria suportável, que isso da Cultura são coisas de gente morta. Antes, a Arte florescia porque tinha mecenas; porque quem tinha dinheiro — e interesse na Cultura — tomava nos seus encargos um artista cujo trabalho admirava ou considerava importante. Hoje, quem tem dinheiro, recorre aos grandes circuitos do mercado da Arte, e aquilo com que sonha é que as visitas rejubilem ao ver um quadro de quinhentos mil euros pespegado na parede da sala, e que exultem na audição do valor — o seu interesse na Cultura é o interesse pela monetarização da Cultura –, e que se maravilhem o suficiente para não reparar nos exemplares de Nicholas Sparks ou Danielle Steel sobre a mesa do café. Não me interpretem mal: eu também fico todo meloso na presença de um quadro de quinhentos mil euros, mas não é pela numeração na etiqueta.

E apesar de tudo isso, espera-se — com esperança messiânica, certamente –, que os artistas de algum modo continuem a produzir, assim como se espera que Portugal pague as suas dívidas e deixe a crise a comer pó. Não interessa bem de que vivem e como vivem os artistas, mas exige-se que continuem a produzir. Hoje, porém, tal é cada vez mais difícil. Porque hoje a Cultura dominante é a do light — haverá melhor indício de que o que queremos mesmo é comer o mundo, e de que aquilo com que nos preocupamos é com o estômago –, e o artista deve produzir tendo em mente o público, tendo em mente a venda, e raras vezes os verdadeiros artistas têm a sorte de que o público comum aprecie a sua obra. Era artista, mas agora exige-se-lhe também que seja marketeer e prostituto. Por tudo isto, parece que pouco faltará para que sejam os artistas a pedir autógrafos ao seu público.

Resta pegar no governo, mas também em todos esses Homens comuns e cinzentos, como lhes chamava D. H. Lawrence, que por aí andam, pelo colarinho, e bradar-lhes com o bafo bem perto do rosto: É a Cultura, estúpido!

 

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, Literatura, Livros

Os livros sem rosto

No Fedro, de Platão, diz Sócrates que os textos não podem responder aos leitores, e que não são oportunos, pois dizem sempre a mesma coisa, independentemente do tempo e daquele que neles pega.

O que Sócrates talvez não pudesse ter adivinhado é que um dia também os textos (ou os livros) iriam perder a sua identidade. Tenho reparado, nas últimas semanas, que cada vez mais gente aparece nos transportes públicos com livros forrados em jornal, ou dentro de umas capas próprias, de tecido e almofadadas; são, talvez, os livros a exigir um tratamento igual aos tablets e aos leitores de ebooks. É uma pena, porém. É uma pena, porque os livros têm a sua capa, e é nela que está a sua identidade, e a do seu autor.

O risco que se corre, claro, é o de enaltecer o livro pelo livro, a leitura pela leitura, reduzindo toda a página impressa a algo que valha a pena ser lido, aquele que lê em alguém que merece reverência, e aquele que escreve num mestre. Esconder a capa de um livro nivela tudo por cima, e fica-se assim enovelado numa espiral involutiva, devedor de uma concepção básica do papel da literatura (erradamente alargada a tudo quanto tenha páginas escritas) como promotora cega de cultura. O cão que corre atrás da cauda nunca é profícuo, e acaba por se tornar patético.

 

Hugo Picado de Almeida

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Livros, Pensamentos, Política

E os políticos, não se abatem?

Tenho estado a ler um livro de Horace McCoy, Os Cavalos Também se Abatem, onde uma boa centena de pares se entrega a uma diabólica maratona de dança, de onde vão sendo eliminados ao cairem mortos de exaustão, na tentativa de sobreviver ao carrossel dantesco animado pelos risos e aplausos de uma multidão quase demente.

Os pares dançam no limite das suas forças, durante semanas a fio, parando apenas por um punhado de minutos ao fim de um horror de horas para um lanche rápido, para um fechar de olhos momentâneo ou, às vezes, apenas para reformar os sapatos rotos.

E as regras vão endurecendo à medida que a maratona vai avançando, novos jogos vão sendo criados, animados pelo capitalismo febril e excitado do dono do concurso, que promete sempre maiores recompensas àqueles que mais perto do esgotamento se colocarem.

Pus-me, então, a pensar se não se poderia aproveitar a grande sala da Assembleia da República, esvaziá-la de estrados e de púlpitos e de cadeiras, e pôr políticos a dançar pelo interior do perímetro da sala, para gáudio da populaça batendo palmas estrepitosas nas galerias. Quando a retórica se torna vazia e dança em torno de si mesma, o melhor é pôr os corpos em rápida rotação, para que as bocas se calem e a cabeça se dispa de tudo quanto é acessório.

 

Hugo Picado de Almeida

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Ciência, Mitos, Pensamentos

A Lua cheira a mofo

A Lua cheira a mofo. O que, de resto, se compreende e aceita, como às casas amofinadas por há muito não se lá ir.

A coisa funciona assim: há no Met, em Nova Iorque, uma exposição sobre o Espaço, e no espaço da exposição há uma maquineta da qual se aproxima o nariz e se carrega num botão, sendo-se imediatamente bafejado pela fragrância da Lua. Um mestre-perfumeiro ou um enólogo talvez detectassem notas de sedimentos pulveráceos e apontamentos de vegetações criptogâmicas parasitárias, e também eles estariam certos, ainda que a coisa soasse quase a gourmet. A verdade é que, sem esses artifícios linguísticos, se tratava de pedras, pó e mofo. É isso a que a Lua cheira, e de nada vale fantasiarmos mais sobre o assunto.

Claro que este dado poderá entusiasmar aqueles que acreditam que a Lua que o Homem pisou está numa cave em Hollywood (temos essa crença, de que tudo está ou pode estar lá), mas eis que talvez seja que, na verdade, seja a própria Hollywood que está na Lua, pois que não temos possibilidade de lhe tocar e de andar nela sem ser pelo ecrã. Terá sido o ecrã a ir à Lua, ou a Lua a descer ao ecrã? O que parece a mesma coisa, pode não o ser.

 

Hugo Picado de Almeida

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Pensamentos, Pessoas

As boas raparigas levadas em ombros rudes

Quando penso que não há coincidências, elas saltam-me ao caminho, e a pés juntos.

Outro dia passei horas com uma frase na cabeça, a frase que uma senhora envergava na camisola, sobre as omoplatas nímias: «As boas raparigas vão para o céu, as más vão para todo o lado». Claro está que a frase, sobre a ombradura da senhora, instilou em mim uma certa sede de parvoíce que o leitor sabe por vezes acometer contra mim, mas os acontecimentos do dia lá me foram secando a fonte e norteando o pensamento para outros afazeres.

E é nessa altura, quando estamos distraídos, que a coincidência concretiza a sua emboscada. No dia seguinte, quando abro o jornal, já esquecido da tal frase, deparo-me com a notícia da morte da famosa ex-directora da revista feminina Cosmopolitan, Helen Gurley Brown, que cunhou a tal frase sobre as boas e as más raparigas, frase, aliás, que inspirou uma série de frases um pouco por todo o mundo, declinada para camisolas-sousvenir de várias cidades e países, sobre mulheres, homens, londrinos, italianos, e todos aquelas que tenham capacidade para vender camisolas com frases cómicas.

Relembro-me então das costas algo disformes da senhora que outro dia carregava nos ombros rudes e sisudos a tal frase, e pergunto-me se fará ideia de quem a disse, e do papel que Helen Brown teve na sua emancipação enquanto mulher, e enfim, na possibilidade dela usar uma camisola assim.

 

Hugo Picado de Almeida

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Metro, Pensamentos

Sem soutien

Sempre me espantou haver uma loja da DIM na estação do Marquês de Pombal.

Que pode dar jeito, eu aceito, mas reservo-me o direito de duvidar que ali, na montra aberta sobre um corredor do Metropolitano, se encontre o sítio mais convidativo para admirar rendas e lacinhos íntimos. Mas a loja lá está, há anos, com os seus bustos femininos na montra, em toda a sua plástica, envergando soutiens provocantes, desses capazes de retirar, muito oportunamente, o soutien a quem os vê.

Acabo de lembrar-me, muito a propósito, que esse pode muito bem ter sido o motivo que propiciou o estrondoso estatelar no chão de uma senhora no outro dia, alguns metros depois da montra.

Eu compreendo-a, minha senhora. Há coisas evidentemente capazes de nos ceifarem o equilíbrio e retirarem o fôlego.

 

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Livros, Pensamentos

Gravidade

Estou convencido de que algo se passa com os portugueses. Não é só nos Jogos Olímpicos que, salvo honrosas excepções, temos caído que nem tordos. Nas ruas de Lisboa, quem sabe se por solidariedade, o mesmo tem acontecido. Uma pessoa a cair de vez em quando, é azar. Três num par de dias, começa a parecer-me tendência.

Ainda ontem foi uma senhora que, em corrida para o metro que se preparava para escapar, tropeçou e desceu de barriga um lanço de escadas inteirinho sem que ninguém lhe pudesse valer, pois o metro fechou portas no mesmo instante, deixando-a a lamber as feridas. Outro dia, mais duas, no espaço ignóbil de um minuto, vi-as também eu a acariciarem o chão com paixão e certamente muito ardor. Uma, estatelou-se redonda, escorregando sobre uma grelha no chão e aí ficando sentada, rodeada de transeuntes solícitos; a segunda, menos de um minuto volvido, tropeçava nos sinalizadores de uma máquina de asfaltar junto ao Marquês de Pombal, caindo de bruços sobre a faixa de rodagem, onde os carros aceleravam, impiedosos, alvejando-a com os faróis — e felizmente só com isso.

Há-de haver, porém, uma explicação perfeitamente lógica para tudo isto. A gravidade das economias a implicar com a gravidade física, talvez? N’ A Jangada de Pedra, do Saramago, o chão começava, de algum modo, a fugir-nos debaixo dos pés, como se a península tivesse sido corrida e ostracizada pelo resto da Europa. Será assim que respondem os portugueses, abraçando o solo para que não se rompa o istmo? A Irlanda está lá na sua ilha, a Grécia é uma península, a Itália também, Portugal e Espanha obdecem à regra. E a Europa parece gostar pouco de jangadas: dão um ar pobretanas ao prato.

 

Hugo Picado de Almeida

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