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Corpografia

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Creio sentir-me mais europeu do que português.

Portugal não está mal de todo, Lisboa sabe bem seduzir-nos, e será o país, ainda assim, um dos locais onde se pode desejar existir, sobretudo se comparado com alguns dos sítios do globo onde as gentes vão insistindo em nascer, para infelicidade de todos. De todo o modo, creio sentir-me menos português do que europeu. E talvez não possa ser de outra forma. O campo do nascimento no passaporte implica sempre um desvio emocional, uma tendência umbilical, e os cordões talvez não se safem de ser amarra e obrigação. A livre adesão a um conceito e a todos os valores que lhe vêm por arrasto é que é bela.

E talvez nada haja de mais belo do que duas pessoas à conversa em línguas diferentes, ou numa terceira que possam partilhar e que lhes torne íntimas palavras e feitos e paixões. Comunicar traduz-se aí; no que é igual é pouco legítimo encontrar comuns. Para mim, a Europa é isso.

Hugo Picado de Almeida

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Ter o Saramago ao ombro

(Foto de Pera Nikolic)

(Foto de Pera Nikolic)

Quando se diz que a escrita (ou a obra) sobrevive sempre ao seu autor está a dizer-se a verdade. E é bom que assim seja. Como dizia o meu Professor Abel Barros Baptista, o que seria de nós se tivéssemos o Saramago a espreitar-nos sobre o ombro enquanto líamos As Intermitências da Morte? Em sentido contrário, porém e também, é muito provável que um autor não possa, sobretudo em vida, sobreviver à sua escrita. Porque a escrita é sentença interpretativa, nunca inócua, nunca calada. Causa feridos e mortos, queima e arrasa. Sei bem que desejava escrever o que não posso e sobretudo o que não devo. Sei ainda que o escrevo na mesma mas que não o dou a ler, e portanto não vou além da mesma possivelmente tola cobardia de falar a um telefone sem morada do outro lado. Quem escreve é evidentemente o leitor, e escreve-se sempre para alguém.

Hugo Picado de Almeida

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Ideia para um reality show

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Escolhe-se um grupo de dez ou doze políticos e seus associados.
Vão buscar-se para o programa a dada hora, sem que o esperem e em directo, para potenciar as audiências.
Depois disso, encerram-se num tribunal envidraçado. Ao confessionário pode chamar-se “calabouço”, por conveniência mediática.
De hora a hora, fazem-se ligações directas ao tribunal, onde se vai fazendo com que os concorrentes desfilem à frente das câmaras, em ângulos apertados e se possível meio encobertos para que a noção do segredo seja maior. Deve ser desenvolvido um intenso trabalho de estúdio, porque no local nada se passa nem nada se deve passar.
O ideal é até que não se oiça a voz dos concorrentes; é preferível que se reúna um painel de comentadores que vá puxando o público para um lado e para o outro. Um pelotão de jornalistas deve estar constantemente a tentar invadir o espaço do concurso, para que se mantenha no público a sensação de uma iminência que não existe.
Uma vez por semana, preferencialmente em prime time, pede-se ao público que vote em quem quer ver na prisão. Ao contrário dos habituais reality shows, neste não importa muito manipular a votação: todos os concorrentes já estão condenados e o último a sair não será, evidentemente, celebrado numa gala de domingo.


Hugo Picado de Almeida

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A espera

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O tempo cura praticamente tudo, menos a espera, menos o tempo. Tempo contra tempo, contratempo, o que fica e o que falta.

A espera é a porção que permanece, uma sucessão ininterrupta de instantes interrompidos, entrave e enclave nos subúrbios do relógio, bloco rochoso sufocando a garganta que de outro modo seria cascata correndo. E lá em cima, no topo da falésia, a água não pode senão avolumar-se, agigantar-se na sede de se fazer mergulho, e de mergulhar mesmo, mais tarde ou mais cedo. Talvez a espera seja também promessa. É preciso que seja.

Hugo Picado de Almeida

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Devia ser possível definir uma cidade através da súmula das descrições das gentes nela. Se ao menos se soubesse por onde começar.

Há, evidentemente, questões práticas a que atender. Deverão incluir-se os turistas? Creio que sim, pois o seu beijo fácil também preserva o que é Paris, assim como o seu intenso marulhar transforma Barcelona. Mas como seleccionar os demais, os locais e feitos-locais que fazem as cidades a cada dia? Poderia advogar-se que seria de ir narrando todos aqueles que se encontrasse, por essa mesma ordem, indiferenciadamente. Mas preocupa-me, no fundo, que o azar de primeiro me cruzar com aqueles três barrigudos encartados acabasse por me roubar a cidade que para mim é das mulheres de lábios vermelhos. Porque, está claro, a dimensão da tarefa obrigaria à sondagem à boca das urnas… Mas para o Inferno com tudo se a escrita tiver de se vergar à estatística!

Hugo Picado de Almeida

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Por onde arde um português suave?

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Lembro-me da primeira vez em que me lembro de ver um desses antigos maços de “Português Suave”. Na altura, fiquei a pensar no que haveria ao certo de ser isso de um português suave, mas creio que o que mais me afligiu foi pensar por onde arde um desses portugueses, que hão-de ser, logicamente, os mesmos que os de brandos costumes.

Um destes dias, a ideia tornou-me, ainda sem resposta, à superfície da fronte. Por onde arde um português suave? Começará talvez pela cabeça, como os vulgos cigarros? Talvez não, que o português suave, cidadão com filtro, terno como é seu apanágio, não entra em combustão a reboque de qualquer isqueiro.
Será talvez pelas mãos, dedos fosforescentes, guiando-o no escuro e à força do calor operando o mundo? Não parece provável, no seu baixo teor, fácil de travar. Pode ser que seja pelos pés, com o filtro na cabeça; seria talvez lógico e o mais expectável. Ou talvez isso de ser português suave seja coisa que se espalha, uniforme, pelo corpo, e o português suave arda simultaneamente em toda a linha, necessariamente tolhido de movimentos, que arder em lume brando é talvez pior do que explodir num trago de bomba, e espojar-se no chão para sacudir as chamas não é acto algum.

Além disso, o português suave, mais tarde ou mais cedo, acaba em cinza, e não creio que isso o favoreça. De algum modo, ser chama apaixonada parece-me melhor projecto de vida do que ser português suave, empacotado no cartão e amordaçado no celofone em grupos de vinte.

Hugo Picado de Almeida

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Por que escrevo?

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Tenho na estante um pequenino livro do Orwell, bonita edição como em regra são as da Penguin, que se intitula Why I Write. Já ali está há vários anos, na mesma prateleira, mas por razões mais ou menos claras, ou por razão nenhuma — o que é, na verdade, o mesmo –, creio que não cheguei a passar-lhe da primeira página. Reparei nele ontem, por acaso, como a um amigo que se encontra na rua, e encaixei a pergunta. Por que escrevo?

Posto que está que a literatura não há-de salvar nada nem, provável e tragicamente, vir a fazer algo pela Humanidade, deve restar-me uma razão bem egoísta para o fazer. A fama não é, pois, a julgar pelos nossos reality shows, o século é dos cantores e dos cozinheiros. Vaidade ou luxúria também não serão; creio que já uma personagem minha disse que isso das mulheres se apaixonarem pelos escritores é chão que já nem uvas se lembra de ter chegado a dar. O dinheiro é a talvez a carta que mais fora do baralho está; além do mais, ulteriormente prefiro que me leiam do que me paguem para fazê-lo. Resta-me, creio eu, o louco, puro prazer de ver o que pode surgir do contacto de uma caneta com um pedaço de papel, que de todo não é a tinta, e de me divertir manipulando uma das mais antigas e poderosas ferramentas da espécie.

Na verdade, sempre soube que não me interessa tanto contar histórias, mas sobretudo explorar o que pode ser dito. Creio, sim, que é essa a minha razão: um pueril desejo de mexer com as mãos.

Hugo Picado de Almeida

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Brace! Brace!

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Andar de avião, essa muito pouco humana actividade de voar, encerra em si o derradeiro sinal do humanismo, último reduto da noção da espécie. Os procedimentos de segurança de um avião são a última marca, na nossa sociedade, da nossa condição mortal, mas também um dos últimos testemunhos da consciência do outro.

Quase tudo, no nosso dia-a-dia, tem o potencial para nos matar, mas só o avião confessa poder vir a fazê-lo. Há nisso uma certa ternura.

E se qualquer um de nós saberia já recitar as instruções de segurança da aeronave, há sempre um silêncio ritual enquanto a tripulação executa a sua cuidada coreografia. E é esse um respeito merecido por aquele grupo de desconhecidos que tanto aparenta preocupar-se com a nossa vida. Para mim, chega a ser enternecedor ver-lhes o empenho, tanto mais quanto inocentes se me afiguram as instruções.

De algum modo, cheira-me que enfiar a cabeça nos joelhos não fará propriamente diferença na hora em que oitenta mil toneladas de metal e combustível se espetarem no chão a mais de oitocentos quilómetros por hora, mas é das coisas mais bonitas da vida, isso de ver outro ser humano dar-nos tão assertivamente a fórmula para a sobrevivência.

Hugo Picado de Almeida

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A segurança da permanência

(Myrabella/Wikimedia Commons)

Place Dauphine, Paris (Myrabella/Wikimedia Commons)

Talvez o que me agrade nas grandes cidades seja a constância dos seus grandes edifícios. De todas as vezes que fui a Paris, a Torre Eiffel estava lá, os Jardins do Luxemburgo não se tinham movido um centímetro, a Notre Dame continuava na sua atalaia sobre o Sena, o Hôtel de Ville na sua praça e o Louvre no final das Tuileries. Até a silenciosa Place Dauphine, escondida à vista de todos, bem no centro, permanece sempre lá, passível de reencontro no mesmo sítio, sem hora marcada. Há conforto nessa permanência, sem dúvida. No reencontro que ela assegura mesmo que tudo o resto, na vida, se tenha tornado diferente. Bem vistas as coisas, talvez seja apenas a relativa imobilidade da arquitectura que torna possível a vida contemporânea nas grandes cidades.

Hugo Picado de Almeida
[Paris, 1 Novembro 2014]

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