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Touch

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Há coisa de um ano passei uma mão-cheia de dias a escrever por Paris, sobretudo nas Tuilleries e nos Jardins do Luxemburgo — premonitória coincidência? — e pude, com tempo para ficar e absorver, sozinho para deambular, reparar em cantos e coisas que de todas as outras vezes deixara por descobrir. Algo que me ficou na memória foi uma parede de pedra picada pelas balas da libertação de Paris (25 de Agosto de 1944) e pelos estilhaços do bombardeamento da cidade (20 de Janeiro de 1918) no número 60 do Boulevard Saint-Michel.

Passei pela parede, li a placa identificativa, e segui adiante, apenas para me deter ao cabo de alguns metros. Senti a enorme vontade de tocar aquela parede que ali se dava como pedaço de história inadvertidamente fora de museu. Estava já atrasado para deixar o estúdio que alugara e apanhar o RER, e acabei por ficar ali, só, a meio do largo passeio, na tentativa de decidir se havia de refazer o caminho para tocar a parede. Acabei, na altura, por achar pateta arriscar perder comboio e avião para roçar as mãozinhas nuns blocos de pedra, mas sei hoje que lá devia ter voltado. Ao recordar a fotografia no telemóvel, arrastando os dedos sobre a imagem envidraçada, pareceu-me triste não o ter feito na aspereza da realidade.

Hugo Picado de Almeida

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Uma Fogueira em Forma de Assim

livros fogueira

Por alguma benévola coincidência, quis o tempo e o acaso das leituras plantar-me nas mãos, nem vinte e quatro horas decorridas deste meu pequeno caligrama, ideias ecoantes nas páginas abertas como gargantas montanhosas do Uma Coisa em Forma de Assim, do Alexandre O’Neill, onde Maria Antónia Oliveira, sua editora, logo na segunda página do posfácio coloca na boca de O’Neill que “hoje lê-se muito, lê-se mal e depressa”, para de seguida dar o seu contributo, ao confessar que por vezes vai “a ponto de preferir o lixo da cozinha ao do escritório, especialmente antes de um jantar de esparguete e molho de tomate, ou aqueles momentos em que resolvo limpar o frigorífico de todos os tupperwares com resíduos alimentares duvidosos e restos bolorentos — que bem que ficam derramados em cima de certos livros.”

A mim, que sou dono de livros como de mais nada, custa-me ainda assim ver um livro ser desperdiçado, deitado fora, e talvez não me seja possível subscrever esta ideia em forma de assim, mas talvez preferisse que os maus livros não chegassem sequer a ser impressos. Evitava-se a fogueira, protegia-se o ambiente duas vezes, poupava-se tempo.

Hoje lê-se mal, mas se se lê mal, é porque se escreve pior, porque se edita pior, porque se quer vender pior.

 

Hugo Picado de Almeida

 

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