Cultura, História, Livros

Começou hoje a ser julgado, na Bélgica, o livro Tintim no Congo. O livro, escrito há oitenta anos (a versão colorida é pouco mais recente, publicada em 1946), é por um cidadão congolês acusado de racismo. Ora, como tenho o livro ali na estante e sou facilmente incomodado por parvoíces deste calibre, fui buscá-lo, para ver de que se queixava o referido cidadão.

Após percorrer as páginas, a única coisa que encontro sobre os cidadãos do Congo – de salientar que os cidadãos congoleses representados pertencem a uma tribo profundamente embrenhada na selva – é que não falavam com total correcção a língua de Tintim.

Pode compreender-se que o Congo se sinta desconfortável com a sua história e que procure vingar-se em símbolos da língua francesa e da cultura belga, um pouco como Angola procura vingar-se de Portugal à força de stickadas, apontadas mais aos corpos adversários do que à bola, num recente campeonato mundial de hóquei em patins.

Não significa que não tenham existido abusos nas colónias, ou que o orgulho de um povo seja fácil de sarar, mas a literatura – e as outras artes – nada têm a ver com assunto. Ou têm. Aliás, não será senão por documentos como os livros – de ficção ou não -, fotografias, filmes e desenhos que algumas atrocidades do passado preservarão o seu lugar na História e, assim, na memória colectiva dos povos.

Se Tintim no Congo for retirado do mercado, como pretende este cidadão congolês, pode ser que as próximas gerações voltem a cometer os erros do passado, e aí voltaremos a exigir que a cultura desempenhe o seu papel de educadora. A censura aliada ao esquecimento, ou à vontade de não ver, serão os piores inimigos da humanidade.

Como diz Antoine Compagnon em Para que serve a literatura: «A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio (…) de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo (…). Ela torna-nos sensível ao facto de que os outros são muito diversos e que os seus valores se distanciam dos nossos.»

Hugo Picado de Almeida

Saber. Para quê?

Citação
Arte, Cinema, Pensamentos

O duplo

Ontem vi um dos filmes de animação mais maravilhosos que já tive oportunidade de ver. Não pela tecnologia utilizada, mas sim pela estética e pelos pormenores, pelos detalhes do argumento. Há argumentos assim, que valem pela inteligência e brilhantismo escondidos nos detalhes. Contadores de histórias há muitos – ainda que bons -, indivíduos capazes de escrever para além disso, não tantos. Ora, o argumentista de Le Roi et l’Oiseau está certamente entre estes segundos.

Interessa-me, porém, o facto da ditadura no pequeno país acastelado do filme ser, essencialmente, uma ditadura estética. Claro que há trabalhos forçados, prisões (d’État, d’Été, d’Hiver…), uma polícia/guarda real e até mesmo um déspota de bigode. Por ditadura estética falo do excesso de símbolos – que não representam senão o rei, num Estado que não tem insígnias que não o próprio rosto do monarca -, mas também uma quase total subordinação ao visual. Não é por acaso que o rei é estrábico, e esse facto, aparentemente simples e inócuo, assume na história grandes proporções. A força do visual, da imagem imaculada do monarca é tal que todas as suas representações o imitam em tudo menos no olhar, que o têm direito, perfeito como se impõe pelo culto do líder.

Acontece, então, que se dá uma reviravolta no estatuto de verdade de representado e representação, e a realidade dá lugar ao hiper-real: a representação ganha tal força que sai do quadro e o duplo subjuga o próprio monarca, fundando uma nova realidade que está, por isso, mais longe de o ser. Mas, como em qualquer dispositivo hiper-real bem construído, é o duplo que se torna presente e real, é ele que funda a narrativa daí em diante. A cópia ultrapassa o seu original e toma o seu lugar.

O rei de Le Roi et L’Oiseau é, assim, vítima da própria ficção que constrói para si, na figura do seu duplo aperfeiçoado que o assassina. Lembrei-me, porém, que era inevitável que tal acontecesse, já que só assim a tirania do visual pode ser vingada, restabelecendo-se a ordem, mas agora a um novo nível, um nível mais distante do real que a ele já não se adequava.

É esse o poder da hiper-realidade, e é assim no nosso próprio mundo.

Hugo Picado de Almeida.

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Cultura, Guerra, História, Pensamentos, Política, Terrorismo

11 de Setembro, um Potlatch gigantesco

Quando Baudrillard se referiu ao 11 de Setembro como um “potlatch gigantesco”, a dor da perda e a (hiper-)sensibilidade ao evento mais traumático e surpreendente do século XXI (seguido pela televisão em todo o Mundo e em directo, como talvez nunca outro acontecimento tenha sido – facto decisivo para a dimensão do evento), impediram a compreensão das palavras de Baudrillard, e levaram a lê-lo como provocador.

Será agora, com 10 anos de distância do atentado, altura de regressarmos ao assunto, e de, gozando da vantagem de conhecer como se desenrolaram os acontecimentos no pós 11 de Setembro, tentar compreender criticamente toda a sua dimensão.

Comecemos, então, por relembrar de forma sumária as características essenciais do potlatch (espécie de festival onde se renunciava a determinados bens materiais, em que se distribuía ou destruía a riqueza própria, como demonstração de poder) nas tribos indígenas da América do Norte, como relatado por Marcel Mauss[1]:

– dádiva de bens (é impossível não aceitar uma oferta);

– bind: é obrigatório retribuir de forma que supere a dádiva recebida;

– quanto maior a oferta de bens ou a sua destruição, mais rico e poderoso o indivíduo.

DÁDIVA. O 11 de Setembro foi uma dádiva impossível de rejeitar: acção de força e surpresa.

BIND. Não retribuir era um sinal de fraqueza, era sinal de que não se era suficientemente poderoso. Como era possível não retribuir, não agir perante um atentado tão violento? O discurso de Bush, no próprio dia 11 de Setembro, é prova disso.

DESTRUIÇÃO. O potlatch na sua dimensão destruidora[2] interessa-nos grandemente. Não é possível não analisar o 11 de Setembro como destruição. No sentido do potlatch, quem mais destrói o que é seu, mais poderoso se torna, pois a sua “fortuna” admite/resiste a um maior grau de destruição. Se pensarmos quer o 11 de Setembro quer outros atentados-suicidas à luz desta realidade, temos que concordar com a definição de Baudrillard. Que maior destruição própria pode haver que a destruição da própria vida? Mais, a destruição da própria vida num atentado-bombista vai além do potlatch original: a destruição do bem próprio é acompanhada de uma destruição brutal e traumática do alheio – O meu poder é tal que, a destruição do meu, implica a destruição do outro.

Também como no 11 de Setembro, no potlatch original não havia maneira de não aceitar a dádiva (ou a destruição). A questão era, então, se não podemos evitá-lo, como responder-lhe, como retribuir? (A oferta exige retribuição, e é nesse constante superar de ofertas por meio de retribuições progressivamente mais fortes que o potlatch se concretiza, num sistema que se auto-alimenta).

Mas como retribuir com superação do recebido, no caso do 11 de Setembro? Como retribuir face a algo tão grotesco, poderoso e surpreendente? Não parece possível e, pelo menos até ao momento, não foi possível – em parte porque o terrorismo não tem rosto, mas também porque os agentes do 11 de Setembro deixaram de existir no momento da dádiva. E é daí – da impossibilidade de fazer alguém pagar – que resulta a brutalidade do 11 de Setembro para o Mundo Ocidental: não podendo retribuir, o Ocidente vê-se humilhado, remetido para a posição do chefe índio que não foi capaz de estar à altura de uma oferenda. O potlatch, como o 11 de Setembro, é uma guerra de forças, e em 2001, o Ocidente começou a perder.

A guerra contra o Iraque é prova disso. Não podendo retribuir, o Ocidente construiu uma narrativa que visava direccionar as lentes dos media para algo em que o Ocidente se podia mostrar superior, onde poderia mostrar o seu poder, a sua virilidade, mesmo que pouco ou nada essa demanda tivesse a ver com o terrorismo.

A Guerra como narrativa

O 11 de Setembro teve a dimensão que teve, em grande parte, por causa dos media. A sua força e brutalidade veio muito da repetição, dos vários ângulos, dos milhares de fotografias e testemunhos difundidos até ao ponto de não restar mais ninguém para ouvir, das simulações por computador, das obras ficcionais veiculadas pelos media.

Novamente: o 11 de Setembro foi além do potlatch original, porque foi um potlatch global − ele extravasou a aldeia, galgou as margens do lago de onde só a tribo bebia; a ele assistiram pessoas que nem sequer sabiam da existência da tribo; de qualquer uma delas, aliás.

A nossa era, dos ecrãs e do directo (o directo já não é só a emissão a partir do local e do tempo do acontecimento, mas também a recepção no tempo e no local onde estou, esteja onde estiver) potenciou a difusão e o trauma do 11 de Setembro e, como eco, amplificou as consequências do atentado, o seu poder e responsabilidade: os media levaram o potlatch ao mundo e, através deles, o mundo exigiu a retribuição.

Foi então que, sem poder responder de forma superior ou, sequer, igual, nos mesmos termos, o mundo ocidental pegou num caderno em branco e iniciou a sua sequela contra o Iraque. Porquê? Porque a humilhação seria insuportável, tanto mais insuportável quanto o número de repetições televisivas e imagens da dor ocidental, em multi-câmaras e câmara lenta.

Mas os media não ficaram por aí. Foram veículo da humilhação, foram voz da exigência de retribuição, e foram também transmissores da “solução”. Assim se justifica o acompanhamento permanente à guerra do Iraque, do primeiro ao último minuto: assim se conseguiu imergir o público no dia-a-dia da guerra, o que lhe dava a sensação de que algo estava realmente a ser feito. A Guerra contra o Iraque não foi tanto uma retribuição à dádiva do 11 de Setembro, mas sobretudo uma retribuição às exigências do público ocidental.

É daqui que advém a irresolução do problema “terrorismo”, o seu estado pendente e da continuação dos atentados. Não é possível responder-lhe. E nós, sabendo disso, fazemos o que é possível: responder a quem exige uma resposta; aparentar que, de alguma forma, respondemos, sem que de facto estejamos a responder ao terrorismo.

Curiosamente, é no seio desta narrativa mal direccionada e altamente ensaiada, definida, que algo lhe escapa, algo que, precisamente, resultou nos únicos actos humilhantes e verdadeiramente retributivos aos atentados. Esses actos foram não outros que as fotografias que alguns militares norte-americanos tiraram com prisioneiros feitos ao exército iraquiano. Isso reflecte a espontaneidade dos soldados, o que escapa ao guião rígido da narrativa, o gozo praticado contra os prisioneiros: a humilhação – embora à margem da narrativa, são eles que exprimem o verdadeiro propósito da guerra.

Porquê, então, a contestação? Porquê a condenação destes actos, a crítica internacional, se o acto incarna o desejo de retribuição dos ocidentais, se de facto traduz o domínio do Ocidente, se de facto foi a forma mais próxima de uma retribuição, reduzindo os “inimigos” por meio de signos ridicularizantes, golpes baixos contra a sua cultura, atacando o que de mais fundamental tinham?[3] A razão para tal condenação é que eles falharam o alvo, tal como a própria guerra. Porquê a crítica feroz aos cartoons contra Osama Bin Laden, porquê a crítica às políticas de Sarkozy contra o uso de símbolos religiosos como a Burkha em França? Novamente: porque o alvo está deslocado, porque os dardos foram erradamente apontados. E de onde vem este erro? Do facto de levarmos demasiadamente a sério, não a ameaça do inimigo, mas as razões atrás das quais este se escuda. A Al-Qaeda diz combater os inimigos do Islão, e o Ocidente acreditou. Acreditou de tal forma que respondeu ao chamamento e se converteu novamente em cruzado, que era precisamente o que a Al-Qaeda desejava, para assim se poder afirmar a travar uma guerra santa, para assim tornar corpóreo o inimigo ocidental que existia apenas na sua mente, na sua ideologia radical.

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[1] MAUSS, Marcel, (2008) Ensaio sobre a dádiva, Edições 70.

[2] Esta é, aliás, uma das suas principais características, já que esteve na base da proibição que tornou o potlatch ilegal nos EUA e Canadá (séc.XIX).

[3] O 11 de Setembro foi tão brutal para o Ocidente porque atacou o seu símbolo de poder, o símbolo da sua hegemonia, o expoente máximo do seu materialismo, a imagem do seu poder económico sobre o Mundo. Por sua vez, as fotografias aos prisioneiros iraquianos atacaram o que de mais importante eles tinham: a sua cultura, a sua virilidade numa sociedade altamente machista.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, Livros, Pensamentos

Estes franceses são loucos!

Bastaria mudar a palavra «romanos» para «franceses» e facilmente este título poderia ser de um livro das aventuras de Astérix, o gaulês. Mas a aventura aqui é outra, e tem um par de investigadores, também eles gauleses, como protagonistas.

Aqui há uns meses, Antoine Buéno chocou meio mundo – a outra metade não o ouviu – ao dizer que os Estrunfes eram a encenação de um regime ditatorial. O facto de ter reconhecido elementos ligados tanto ao regime nazi como ao estalinismo numa mesma comunidade de bonecos animados parece não importar ao investigador. Parece que no país dos Estrunfes a iniciativa privada não é estimulada, as refeições são feitas em conjunto e é proibido sair do país – assuntos que naturalmente preocupam os desenhos animados. Além disso, o investigador conseguiu ver, por entre os estrunfes – criaturas que parecem clones umas das outras, à excepção dos adereços -, Trotsky e Estaline. Trotsky é o estrunfe de óculos que, bem vistas as coisas, também poderia ser eu, que também uso óculos; quanto a Estaline, ele é, obviamente, o estrunfe que veste de vermelho e tem barba branca. Protestará o leitor: mas Estaline não tinha barba branca! Pois não, mas vestia de vermelho. Ah, não… também não vestia… Apesar de toda a estética rubra da URSS, Estaline não vestia de vermelho… Pois era… Mas pronto, Estaline também era o chefe da sua aldeia e acabou-se aqui a discussão. O Papá Estrunfe é Estaline e não se fala mais nisso! Mas como isto ainda não satisfazia o investigador – que um só regime ditatorial na bonecada é coisa para meninos -, também o nazismo está presente nos estrunfes, pela presença de um judeu marginalizado, aparentemente o Gargamel/Gasganete, mas nem vale a pena entrarmos por aí.

O que me interessa é que, ao que parece, a moda pegou, e um outro investigador francês, Michel Serres, vem agora dizer que também Astérix é um elogio do fascismo e do nazismo. Porquê? Basicamente, são três os argumentos: (1) porque tudo se resolve à pancada, (2) porque a poção mágica é um elogio da droga e (3) porque o constante calar do bardo representa um desprezo pela cultura.

É esse o risco das histórias, desenhadas e/ou escritas: cada um vê nelas aquilo que quer, cada um retira delas aquilo que deseja, e nada do que o seu autor venha a dizer poderá impedir os leitores de decidirem, na auto-determinação da leitura em solidão, qual é o significado que da obra retiram para si. Um investigador português, ao ver no Astérix um antro de pancada, drogas e desprezo pela cultura aceite talvez o situasse na Cova da Moura ou no Bairro do Lagarteiro.

Hugo Picado de Almeida.

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Cultura, Livros

Destruir tem vários nomes

No mês passado, lia no blog do Manuel Jorge Marmelo (aquele que ali na barra lateral se chama Teatro Anatómico) sobre a destruição de livros (aqui e também aqui), e concordava, assentindo com a cabeça enquanto lia, que tal actividade estava longe de ter passado de moda. Os livros sempre foram – e provavelmente sempre serão – vítimas silenciosas nas mãos de alguma religião, de algum grupo político extremista, ou outros.

Aquilo que já não me passava pela cabeça – e às vezes passam-me por ela ideias bem mais tresloucadas – é que também escolas e bibliotecas – sobretudo ocidentais – pudessem ser carrascos neste caso. O Huffington Post vem dizer-nos (aqui) que ainda este Verão, no Missouri, EUA, foram banidos livros das bibliotecas públicas, entre eles o Matadouro Cinco, de Kurt Vonnegut. E isto acontece logo nos EUA, em que a Primeira Emenda – reparem: não a Segunda nem a Terceira, mas precisamente a Primeira – se refere à liberdade de expressão.

É certo que ninguém queimou os exemplares, como tantas vezes a História viu, mas censurar uma obra é só uma maneira mais refinada e higiénica de a destruir.

De acordo com a ALA (American Library Association), desde 1982, cerca de 11 mil livros (só nos EUA) foram alvo de censura ou de queixas com esse propósito. As justificações têm ido da homossexualidade, passagens de carácter sexual, referência a drogas e violência, entre outras (a fonte é a página de uma iniciativa intitulada Banned Books Week, que se celebra precisamente esta semana). Assim se lê na terra da Liberdade.

Da nossa parte, podemos apenas imitar A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón, e proteger todos os livros que pudermos, seja guardando-os num Cemitério dos Livros Esquecidos – não para que morram, mas para que se escondam -, seja oferecendo-os a alguém que, como Daniel Sempere, o rapazinho do livro de Zafón, jure lê-los e protegê-los.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, Pensamentos

Adeus, letra cursiva

O Illinois, o Indiana, e o Hawaii, três dos quarenta e seis estados norte-americanos que adoptaram uma nova norma educativa, a Common Core Standards (CCS), já anunciaram que, nas suas escolas, o ensino de caligrafia já não faz parte do programa. Os restantes quarenta e três estados que adoptaram a CCS podem decidir igualmente, já que, segundo a norma, o ensino da letra cursiva é optativo e pode ser abandonado para privilegiar “áreas mais importantes”.

As escolas destes estados passam agora a centrar o ensino da escrita nos teclados e, nos casos em que ainda ensinem a escrita à mão, apenas será ensinada “letra de forma”, solta, igual à dos computadores, visando, segundo dizem, “tornar os alunos competentes a escrever num teclado”. Há que compreender: qualquer um de nós – seres cursivos -, falha estrondosamente no acto de dactilografar, e essa falta é obviamente responsabilidade das perninhas e apoios das letras juntas que nos ensinaram nos remotos tempos do Windows 3.1.

Espera-se, portanto, que daqui por alguns anos, um verdadeiro manuscrito seja uma visão rara, já que mesmo aquilo que for escrito à mão – se o for – o será pela mão robótica de algum miúdo padronizado, saído da linha de montagem em que o ensino parece estar a ser convertido, pelo menos nos EUA.

No meio de tudo isto, resta apenas esperar que não os ensinem a escrever em Comic Sans.

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Guerra, História, Livros, Política

A guerra da História

«Actualmente, há cinquenta ou sessenta países envolvidos nesta guerra. Não acredito que todos mereçam que se morra por eles!»

A frase é dita por uma personagem no Catch-22, romance mirabolante de Joseph Heller sobre a própria mirabolância das guerras. Não deixa, pois, de ser de notar este momento de clarividência proferido por um velho num bordel, que responde com uma lógica implacável ao argumentar fervoroso de um americano ferrenho. Eu próprio acredito que nem todos os países, nem todas as coisas, mereçam que se morra por elas, mas acredito também que os países não merecem morrer pelos Homens que compõem uns e outros.

É claro que os países não são como os Homens – por serem os primeiros um grande conjunto dos segundos -, e que é mais penoso para um Homem perder uma guerra do que perdê-la um país, porque todos os países só sofrem através dos Homens que os perfazem. Ser um país não parece, portanto, ser mau, sobretudo se a memória for curta. É que os países, por não serem Homens, não têm memória própria, e se os Homens que os compõem também se furtarem à responsabilidade de a ter, toda a História se perde, e com a perda da História, o futuro está em risco.

A Alemanha converteu-se novamente na cabeça da Europa, e quando os seus representantes esquecem o passado – porque sugerir bandeiras a meia haste é esquecer as estrelas de David cosidas na lapela de seis milhões de judeus -, esquecem necessariamente tudo o que a Europa e os EUA fizeram pela Alemanha, não só nos dois períodos pós-guerra (de guerras iniciadas pela Alemanha) mas também durante a reunificação alemã em 1990.

É de salientar – e de recordar à Alemanha – que o valor da dívida alemã, à época, era muito superior às actuais dívidas de Portugal, Grécia e Irlanda. Nas palavras do historiador alemão Albrecht Ritschl, a Alemanha é mesmo o país que acumulou maior dívida durante todo o século XX. E quando se levantam vozes na Europa que dizem que uns países não devem pagar pelos erros dos outros, devemos relembrar que os países ocupados pela Alemanha nas duas grandes guerras foram também os países que participaram da recuperação económica alemã – a Grécia incluída -, e a Alemanha nunca os compensou, tendo até deixado por pagar grande parte dos empréstimos que lhe tinham sido feitos.

Enquanto a memória for curta, a Europa só será capaz de falar a uma voz quando houver motivos para celebrar. E esses tempos não parecem ser os de hoje.

Como diz o velho de Catch-22 ao piloto americano: «Atribui tanta importância a ganhar guerras! O verdadeiro truque consiste em saber perdê-las, em saber quais se podem perder. (…) A Alemanha perde-as e prospera.»

Hugo Picado de Almeida

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