Ciência, Cultura, História, Pensamentos, Textos

Entre Baikonur e Kourou

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Lançamento de foguete em Baikonur (fonte: cabinflooresoterica.com)

Sempre me fascinaram os nomes das coisas, e desde que me recordo que determinadas palavras, sem que eu saiba inteiramente destrinçar a razão, mas certamente com raízes na ortografia e na fonética, me espantam e seduzem. E sobre tudo isso, a dúvida da origem, o desconhecimento posto em porquês.

Que um russo seja um cosmonauta e um inglês seja um astronauta não me parece irrelevante nem um mero acaso linguístico. Nem me parece, sobretudo, que deva ser descartado como facto político. Assim como não é igual um centro espacial em Baikonur, no Cazaquistão, ser um cosmódromo, e o mesmo centro, em Kourou, na Guiana Francesa, base da Agência Espacial Europeia, ser uma base de lançamentos espaciais ou, mais claramente ainda, um espaçoporto (usado no Brasil, em tradução directa do inglês spaceport).

Que um lado do mundo tenha optado pelo latino spatium (espaço, no português) para se relacionar com o Universo fora da Terra, e que outro tenha optado pelo grego kósmos (cosmos, no português), poderá ser sobretudo influência cultural e geográfica, mas talvez seja mais do que isso. Por que o spatium se refere à distância, à área entre diferentes pontos, e o kósmos se refere à ordem, ao governo, à estrutura das coisas.

Serão os russos mais contemplativos da harmonia do Universo, mais formais quanto às suas estruturas governativas e admiradores da ordem, ao passo que os ocidentais, berços materiais do capitalismo, mais afectados pela sensação da distância e assolados pela incapacidade do toque?

Afinal, com Gagarin, os russos foram os primeiros a contemplar de perto os astros, mas foram os norte-americanos, nos pés de Armstrong, os primeiros a ter a necessidade de tocar-lhe.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, História, Política

À memória de Sophie Scholl

[à memória de Sophie Scholl, membro do grupo de resistência alemã ao regime Nazi, Rosa Branca, que em Fevereiro de 1943 foi presa enquanto distribuía panfletos contra Hitler na Universidade de Munique. Foi condenada à morte e guilhotinada pela Gestapo, juntamente com o seu irmão, Hans Scholl, e Christian Probst. No total, mais de 50 membros do grupo acabariam por ser executados.]

Já aqui o disse vezes sobejas para que da ideia o leitor se encontre já enfastiado e melindrado, mas o fastio de uns nada poder contra as resoluções dos outros.

Mais a mais, quando falamos de vida e morte, liberdade e opressão, justiça e injustiça; tudo sinónimos, como facilmente se compreender. Tenho pela palavra um amor talvez pouco recomendável, como pouco recomendável talvez seja sempre a paixão por porções de tinta impressa num qualquer suporte. Mas peço ao leitor que me perdoe o excesso e a ousadia, pois creio que a palavra o merece. Invisível mas indelével, visível mas total, dela se faz o Mundo, o Homem, a sua Vida e a sua História. Fora dela, da palavra e da linguagem, o Homem deixa de ser Homem, o Mundo torna-se plano ou até informe, e a Vida, presente intemporal e inesgotável, aniquila a História e os Oráculos. Tudo de uma penada.

E se amo a palavra, estou igualmente no direito de a odiar quando ela a si mesma se atraiçoa. E esse ódio senti-o há dias, no gosto amargo da revolta, ao ver Sophie Scholl — Die Letzten Tage, filme alemão que versa — curiosidade linguísticas — sobre a resistência ao regime nazi dentro da própria Alemanha; realidade que poucas vezes nos é dada a conhecer, quiçá por maniqueismos da pedagogia simplificada, amiúde ela própria catalisadora do preconceito generalizado.

Como seria de esperar num tribunal ao serviço de um regime ditatorial, a retórica torna-se no louco e bizarro exercício da sua ausência. E no “como se” da sua presença se cometem os mais nefandos malabarismos judiciais e linguísticos; não há sentença sem a palavra nem palavra que não seja sentença. E o vício da palavra é esse, o de não permitir distinguir, à superfície, e quiçá mesmo debaixo dela, o bom do mau, o certo do errado. É verade que a violência também não, mas ela é ao menos a alternativa. Se a palavra falha, há sempre a violência. Pode ser ignóbil, pode ser cobarde, pode ser desprezível, condenável ou até desonrosa, mas é escapatória. Tem um poder feio, mas poder que a palavra não tem. Digo-o com amargura. Porque a palavra do cessar-fogo é sempre passo atrás, regresso, pausa e recomeço. Talvez seja essa a ordem natural das coisas, mas nem por isso me desgostas menos que tenha de ser a força, a mão e a arma a reabilitar a palavra.

Sei bem o quanto gostaria de ter visto a palavra salvar Sophie Scholl, que se lhe manteve fiel até ao fim, mas cedo percebi que, se alguma hipótese restava à jovem alemã, era um Panzer de 44,8 toneladas irrompendo pela sala do tribunal, disparando explosivos de calibre 7,5.

Hugo Picado de Almeida

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Cinema, Cultura, História

O Fantasma do Titanic

Assinalam-se por estes dias os cem anos do naufrágio do Titanic, e os Homens, sempre perseguindo – ou perseguidos pel’− os seus fantasmas, comovem-se grandemente com isso. Sintoma exemplar: há seis dias, os destroços do famoso navio foram declarados património protegido pela UNESCO.

Ontem, o navio Balmoral zarpou de Southampton, Inglaterra, precisamente cem anos depois de do mesmo porto ter zarpado o Titanic. A rota será a mesma, o tempo de viagem o mesmo, o número de passageiros a bordo é exactamente o mesmo, as refeições inspiram-se na ementa do navio original, haverá uma orquestra como a que inspirou a do filme de James Cameron, e o destino, claro, é também o mesmo: Nova Iorque.

Parecem estar, assim, reunidos os ingredientes necessários para que a tragédia se concretize em toda a sua plenitude: o regresso do Titanic às salas de cinema, na semana passada, desta vez em 3D, dava já mostras de o querer trazer mais próximo e palpável perante nós.

Jean Baudrillard ainda acabará – acabaria, se pudesse – a rir de tudo isto. Dizia ele que «a realidade imita a ficção», e já em 2010 o Titanic II, filme compreensivelmente sem sucesso pela caricatura em que se tornou sem o perceber, o preparava. Nele, uma réplica do Titanic repetia a viagem, precisamente no centenário da tragédia, e algures a meio do Atlântico deparava, num choque íntimo, com um novo iceberg. O guião, naturalmente ridículo, mereceu pouca atenção, mas a realidade parece sempre conseguir ir mais além do que a ficção, reabilitando-a, e está a pôr-se a jeito de repetir a façanha.

Afinal, como escreveu um dia Woody Allen, ao perseguirmos os nossos fantasmas pode dar-se o caso de que eles atravessem a parede, e nós, na tentativa de os seguir, partamos o nariz.

 

Hugo Picado de Almeida

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História, Religião

O Holocausto do Vaticano

Segundo o Público, o Arcebispo de Moscovo, o italiano Paolo Pezzi, proferiu hoje um discurso em Fátima sobre “os poderes totalitários que odeiam a religiosidade”.

Durante 20 minutos, o Arcebispo terá falado, entre dogmas poéticos destinados a bem ouvir mas a pouco perceber, do tema do “silêncio de Deus”, com que muitas vezes se critica a Igreja por não ter tomado uma posição durante o Holocausto. O Arcebispo terá dito que “mesmo o silêncio de Deus é uma palavra”, e que ainda que esteja em silêncio, isso não significa que esqueça o Homem.

É um argumento fraco e, pior, seria afirmar deus (no qual não acredito, se ainda dúvidas houvesse) como uma espécie de homem fraco, cobarde, que perante a injustiça fica mudo e calado. Eu também não me esqueço se vir alguém ser assaltado, mas se não fizer nada, dá no mesmo. Bem posso ir dizer à vítima “Não se preocupe que eu não me esqueci”, e se me escapar a uma lambada bem aplicada na cara já me posso considerar um sortudo. Ao que parece, deus pode fazer isto sem merecer especial condenação, mas suponho que isso tenha algo a ver com o seguro de saúde inerente à profissão que desempenha.

O problema é que nada disto é realmente verdade, e daqui em diante não há motivos para gracejos. Durante o Holocausto (o nazi), deus nada podia dizer, porque estava demasiado ocupado com o seu próprio Holocausto. É legítimo que quem me lê se pergunte, neste ponto, “de que raio está este indivíduo a falar?”, porque a História, e quem dela se ocupa no nosso falso Estado laico, tem sucedido brilhantemente em ocultar qualquer referência ao tema. Felizmente, aqui há já um par de anos, o meu amigo Bruno Cardoso alertou-me para a existência daquilo que ficou (pouco) conhecido como “O Holocausto do Vaticano” (título do livro de Avro Manhattan, aqui disponível online, documentado até com fotografias dos massacres), que decorreu precisamente durante o início da década de 40. Podem ler aqui bastante sobre o tema, mas para quem preferir a versão curta, aqui fica:

Entre 1941 e 1943, na Croácia, o Governo de Ante Pavelic instaurou um regime de perseguições e extermínio aos ortodoxos – na sua maioria sérvios -, com o total apoio da Igreja, sendo que bispos, padres, monges e mesmo freiras integravam as listas do SABOR (partido totalitarista croata) e as fileiras da Ustashi, seu braço armado organizado como uma força terrorista. Havia, inclusive, padres a chefiar campos de concentração, onde as pessoas eram assassinadas à martelada, envenenadas ou até cremadas vivas. entre Abril e Junho de 1941 foram mortas cerca de 120 mil pessoas.  A par disso, a Ustashi fazia frequentes incursões a vilas e cidades em busca de ortodoxos, imediatamente mortos a sangue frio com violência brutal. O Holocausto do Vaticano foi, proporcionalmente à duração e território abrangido, o pior massacre do Ocidente, suplantando o Holocausto de Hitler. As estimativas apontam para um milhão de mortos.

Ora, em 1998, João Paulo II beatificou o Arcebispo de Zagreb, Stepinac, que integrou o SABOR e foi directamente responsável, junto do chefe-de-estado croata, pelo programa de limpeza étnica dos sérvios ortodoxos. Em 2009, Bento XVI deu um passo importante no processo de beatificação do Papa Pio XII, Papa que assistiu em absoluto silêncio a ambos os Holocaustos simultâneos: o de Hitler e o da sua própria Igreja.

Não se compreende, portanto, que o Arcebiso de Moscovo venha agora dizer que os poderes totalitários sempre odiaram a religiosidade. Ao que parece, pelo menos Pavelic tinha-a na maior consideração, e Hitler também não foi propriamente um seu inimigo.

Hugo Picado de Almeida

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Cultura, História, Livros

Começou hoje a ser julgado, na Bélgica, o livro Tintim no Congo. O livro, escrito há oitenta anos (a versão colorida é pouco mais recente, publicada em 1946), é por um cidadão congolês acusado de racismo. Ora, como tenho o livro ali na estante e sou facilmente incomodado por parvoíces deste calibre, fui buscá-lo, para ver de que se queixava o referido cidadão.

Após percorrer as páginas, a única coisa que encontro sobre os cidadãos do Congo – de salientar que os cidadãos congoleses representados pertencem a uma tribo profundamente embrenhada na selva – é que não falavam com total correcção a língua de Tintim.

Pode compreender-se que o Congo se sinta desconfortável com a sua história e que procure vingar-se em símbolos da língua francesa e da cultura belga, um pouco como Angola procura vingar-se de Portugal à força de stickadas, apontadas mais aos corpos adversários do que à bola, num recente campeonato mundial de hóquei em patins.

Não significa que não tenham existido abusos nas colónias, ou que o orgulho de um povo seja fácil de sarar, mas a literatura – e as outras artes – nada têm a ver com assunto. Ou têm. Aliás, não será senão por documentos como os livros – de ficção ou não -, fotografias, filmes e desenhos que algumas atrocidades do passado preservarão o seu lugar na História e, assim, na memória colectiva dos povos.

Se Tintim no Congo for retirado do mercado, como pretende este cidadão congolês, pode ser que as próximas gerações voltem a cometer os erros do passado, e aí voltaremos a exigir que a cultura desempenhe o seu papel de educadora. A censura aliada ao esquecimento, ou à vontade de não ver, serão os piores inimigos da humanidade.

Como diz Antoine Compagnon em Para que serve a literatura: «A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio (…) de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo (…). Ela torna-nos sensível ao facto de que os outros são muito diversos e que os seus valores se distanciam dos nossos.»

Hugo Picado de Almeida

Saber. Para quê?

Citação
Cultura, Guerra, História, Pensamentos, Política, Terrorismo

11 de Setembro, um Potlatch gigantesco

Quando Baudrillard se referiu ao 11 de Setembro como um “potlatch gigantesco”, a dor da perda e a (hiper-)sensibilidade ao evento mais traumático e surpreendente do século XXI (seguido pela televisão em todo o Mundo e em directo, como talvez nunca outro acontecimento tenha sido – facto decisivo para a dimensão do evento), impediram a compreensão das palavras de Baudrillard, e levaram a lê-lo como provocador.

Será agora, com 10 anos de distância do atentado, altura de regressarmos ao assunto, e de, gozando da vantagem de conhecer como se desenrolaram os acontecimentos no pós 11 de Setembro, tentar compreender criticamente toda a sua dimensão.

Comecemos, então, por relembrar de forma sumária as características essenciais do potlatch (espécie de festival onde se renunciava a determinados bens materiais, em que se distribuía ou destruía a riqueza própria, como demonstração de poder) nas tribos indígenas da América do Norte, como relatado por Marcel Mauss[1]:

– dádiva de bens (é impossível não aceitar uma oferta);

– bind: é obrigatório retribuir de forma que supere a dádiva recebida;

– quanto maior a oferta de bens ou a sua destruição, mais rico e poderoso o indivíduo.

DÁDIVA. O 11 de Setembro foi uma dádiva impossível de rejeitar: acção de força e surpresa.

BIND. Não retribuir era um sinal de fraqueza, era sinal de que não se era suficientemente poderoso. Como era possível não retribuir, não agir perante um atentado tão violento? O discurso de Bush, no próprio dia 11 de Setembro, é prova disso.

DESTRUIÇÃO. O potlatch na sua dimensão destruidora[2] interessa-nos grandemente. Não é possível não analisar o 11 de Setembro como destruição. No sentido do potlatch, quem mais destrói o que é seu, mais poderoso se torna, pois a sua “fortuna” admite/resiste a um maior grau de destruição. Se pensarmos quer o 11 de Setembro quer outros atentados-suicidas à luz desta realidade, temos que concordar com a definição de Baudrillard. Que maior destruição própria pode haver que a destruição da própria vida? Mais, a destruição da própria vida num atentado-bombista vai além do potlatch original: a destruição do bem próprio é acompanhada de uma destruição brutal e traumática do alheio – O meu poder é tal que, a destruição do meu, implica a destruição do outro.

Também como no 11 de Setembro, no potlatch original não havia maneira de não aceitar a dádiva (ou a destruição). A questão era, então, se não podemos evitá-lo, como responder-lhe, como retribuir? (A oferta exige retribuição, e é nesse constante superar de ofertas por meio de retribuições progressivamente mais fortes que o potlatch se concretiza, num sistema que se auto-alimenta).

Mas como retribuir com superação do recebido, no caso do 11 de Setembro? Como retribuir face a algo tão grotesco, poderoso e surpreendente? Não parece possível e, pelo menos até ao momento, não foi possível – em parte porque o terrorismo não tem rosto, mas também porque os agentes do 11 de Setembro deixaram de existir no momento da dádiva. E é daí – da impossibilidade de fazer alguém pagar – que resulta a brutalidade do 11 de Setembro para o Mundo Ocidental: não podendo retribuir, o Ocidente vê-se humilhado, remetido para a posição do chefe índio que não foi capaz de estar à altura de uma oferenda. O potlatch, como o 11 de Setembro, é uma guerra de forças, e em 2001, o Ocidente começou a perder.

A guerra contra o Iraque é prova disso. Não podendo retribuir, o Ocidente construiu uma narrativa que visava direccionar as lentes dos media para algo em que o Ocidente se podia mostrar superior, onde poderia mostrar o seu poder, a sua virilidade, mesmo que pouco ou nada essa demanda tivesse a ver com o terrorismo.

A Guerra como narrativa

O 11 de Setembro teve a dimensão que teve, em grande parte, por causa dos media. A sua força e brutalidade veio muito da repetição, dos vários ângulos, dos milhares de fotografias e testemunhos difundidos até ao ponto de não restar mais ninguém para ouvir, das simulações por computador, das obras ficcionais veiculadas pelos media.

Novamente: o 11 de Setembro foi além do potlatch original, porque foi um potlatch global − ele extravasou a aldeia, galgou as margens do lago de onde só a tribo bebia; a ele assistiram pessoas que nem sequer sabiam da existência da tribo; de qualquer uma delas, aliás.

A nossa era, dos ecrãs e do directo (o directo já não é só a emissão a partir do local e do tempo do acontecimento, mas também a recepção no tempo e no local onde estou, esteja onde estiver) potenciou a difusão e o trauma do 11 de Setembro e, como eco, amplificou as consequências do atentado, o seu poder e responsabilidade: os media levaram o potlatch ao mundo e, através deles, o mundo exigiu a retribuição.

Foi então que, sem poder responder de forma superior ou, sequer, igual, nos mesmos termos, o mundo ocidental pegou num caderno em branco e iniciou a sua sequela contra o Iraque. Porquê? Porque a humilhação seria insuportável, tanto mais insuportável quanto o número de repetições televisivas e imagens da dor ocidental, em multi-câmaras e câmara lenta.

Mas os media não ficaram por aí. Foram veículo da humilhação, foram voz da exigência de retribuição, e foram também transmissores da “solução”. Assim se justifica o acompanhamento permanente à guerra do Iraque, do primeiro ao último minuto: assim se conseguiu imergir o público no dia-a-dia da guerra, o que lhe dava a sensação de que algo estava realmente a ser feito. A Guerra contra o Iraque não foi tanto uma retribuição à dádiva do 11 de Setembro, mas sobretudo uma retribuição às exigências do público ocidental.

É daqui que advém a irresolução do problema “terrorismo”, o seu estado pendente e da continuação dos atentados. Não é possível responder-lhe. E nós, sabendo disso, fazemos o que é possível: responder a quem exige uma resposta; aparentar que, de alguma forma, respondemos, sem que de facto estejamos a responder ao terrorismo.

Curiosamente, é no seio desta narrativa mal direccionada e altamente ensaiada, definida, que algo lhe escapa, algo que, precisamente, resultou nos únicos actos humilhantes e verdadeiramente retributivos aos atentados. Esses actos foram não outros que as fotografias que alguns militares norte-americanos tiraram com prisioneiros feitos ao exército iraquiano. Isso reflecte a espontaneidade dos soldados, o que escapa ao guião rígido da narrativa, o gozo praticado contra os prisioneiros: a humilhação – embora à margem da narrativa, são eles que exprimem o verdadeiro propósito da guerra.

Porquê, então, a contestação? Porquê a condenação destes actos, a crítica internacional, se o acto incarna o desejo de retribuição dos ocidentais, se de facto traduz o domínio do Ocidente, se de facto foi a forma mais próxima de uma retribuição, reduzindo os “inimigos” por meio de signos ridicularizantes, golpes baixos contra a sua cultura, atacando o que de mais fundamental tinham?[3] A razão para tal condenação é que eles falharam o alvo, tal como a própria guerra. Porquê a crítica feroz aos cartoons contra Osama Bin Laden, porquê a crítica às políticas de Sarkozy contra o uso de símbolos religiosos como a Burkha em França? Novamente: porque o alvo está deslocado, porque os dardos foram erradamente apontados. E de onde vem este erro? Do facto de levarmos demasiadamente a sério, não a ameaça do inimigo, mas as razões atrás das quais este se escuda. A Al-Qaeda diz combater os inimigos do Islão, e o Ocidente acreditou. Acreditou de tal forma que respondeu ao chamamento e se converteu novamente em cruzado, que era precisamente o que a Al-Qaeda desejava, para assim se poder afirmar a travar uma guerra santa, para assim tornar corpóreo o inimigo ocidental que existia apenas na sua mente, na sua ideologia radical.

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[1] MAUSS, Marcel, (2008) Ensaio sobre a dádiva, Edições 70.

[2] Esta é, aliás, uma das suas principais características, já que esteve na base da proibição que tornou o potlatch ilegal nos EUA e Canadá (séc.XIX).

[3] O 11 de Setembro foi tão brutal para o Ocidente porque atacou o seu símbolo de poder, o símbolo da sua hegemonia, o expoente máximo do seu materialismo, a imagem do seu poder económico sobre o Mundo. Por sua vez, as fotografias aos prisioneiros iraquianos atacaram o que de mais importante eles tinham: a sua cultura, a sua virilidade numa sociedade altamente machista.

Hugo Picado de Almeida

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Crise, Guerra, História, Livros, Política

A guerra da História

«Actualmente, há cinquenta ou sessenta países envolvidos nesta guerra. Não acredito que todos mereçam que se morra por eles!»

A frase é dita por uma personagem no Catch-22, romance mirabolante de Joseph Heller sobre a própria mirabolância das guerras. Não deixa, pois, de ser de notar este momento de clarividência proferido por um velho num bordel, que responde com uma lógica implacável ao argumentar fervoroso de um americano ferrenho. Eu próprio acredito que nem todos os países, nem todas as coisas, mereçam que se morra por elas, mas acredito também que os países não merecem morrer pelos Homens que compõem uns e outros.

É claro que os países não são como os Homens – por serem os primeiros um grande conjunto dos segundos -, e que é mais penoso para um Homem perder uma guerra do que perdê-la um país, porque todos os países só sofrem através dos Homens que os perfazem. Ser um país não parece, portanto, ser mau, sobretudo se a memória for curta. É que os países, por não serem Homens, não têm memória própria, e se os Homens que os compõem também se furtarem à responsabilidade de a ter, toda a História se perde, e com a perda da História, o futuro está em risco.

A Alemanha converteu-se novamente na cabeça da Europa, e quando os seus representantes esquecem o passado – porque sugerir bandeiras a meia haste é esquecer as estrelas de David cosidas na lapela de seis milhões de judeus -, esquecem necessariamente tudo o que a Europa e os EUA fizeram pela Alemanha, não só nos dois períodos pós-guerra (de guerras iniciadas pela Alemanha) mas também durante a reunificação alemã em 1990.

É de salientar – e de recordar à Alemanha – que o valor da dívida alemã, à época, era muito superior às actuais dívidas de Portugal, Grécia e Irlanda. Nas palavras do historiador alemão Albrecht Ritschl, a Alemanha é mesmo o país que acumulou maior dívida durante todo o século XX. E quando se levantam vozes na Europa que dizem que uns países não devem pagar pelos erros dos outros, devemos relembrar que os países ocupados pela Alemanha nas duas grandes guerras foram também os países que participaram da recuperação económica alemã – a Grécia incluída -, e a Alemanha nunca os compensou, tendo até deixado por pagar grande parte dos empréstimos que lhe tinham sido feitos.

Enquanto a memória for curta, a Europa só será capaz de falar a uma voz quando houver motivos para celebrar. E esses tempos não parecem ser os de hoje.

Como diz o velho de Catch-22 ao piloto americano: «Atribui tanta importância a ganhar guerras! O verdadeiro truque consiste em saber perdê-las, em saber quais se podem perder. (…) A Alemanha perde-as e prospera.»

Hugo Picado de Almeida

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