Sir Lawrence Olivier, narrador do documentário “World at War”.
[no início de um qualquer livro]
Incumbiu-me este escritor, o mesmo que solenemente mandou pôr o nomezinho na capa – tendo-lhe isso dado grande contentamento e orgulho −, de narrar ao leitor a história que se segue.
Primeiramente, será preciso dizer que talvez não seja possível ancorar esta história num tempo concreto nem numa época muito precisa, pois que isso talvez nem tenha préstimo algum. Não é ela, portanto, documento histórico, não é arqueologia, nem sequer disso tentativa, sobre o que quer que seja; é o caso de, simplesmente, ter um cenário, como toda e qualquer narrativa. Poderá ser apenas uma localização histórica, encruzilhada acidentada entre espaço e tempo, melhor dizendo; vago lembrete da época em que as coisas se teriam passado. Claro que, com o passar das páginas e do tempo nelas, não é certo que o pano de fundo não possa vir a revelar-se central para a obra, vindo insinuar-se, boiando à superfície do palco, como um balão de tecido branco. A época é sempre parte das coisas que nela se passam, dê lá por onde der, e está aí o Carbono-14 para nos impedir de dizer o contrário. Na verdade, aqui entre nós, creio que nem este alinhavador de letras que assina o livrinho tem a certeza de onde tudo isto irá parar. E eu não estou melhor, que aqui tenho pouco ou nenhum voto na matéria. Serei, talvez e sobretudo, um consultor, mas menos desses de consultar do que dos que consultam. E mesmo isso vale-me também de pouco porque, repare-se, nem sei ainda com o que conto neste conto que não é conto algum, nem quantos pontos lhe posso acrescentar. E isso irrita-me.
Acredito que para o leitor, que já recebe o livro depois das discussões e dos bloqueios e de todos os achaques de que padecem as narrativas – rouquidões enfisemáticas, glossites histéricas, dilalias nervosas, loquacidades crónicas e agudas, espasticidades verbais, quer benignas quer malignas −; como dizia, para o leitor que já lhe pega encadernado numa tranquila capazinha, toda ela alegria e realização, aplausos e autógrafos (caso as coisas corram realmente bem), a literatura há-de ser coisa salutar e muito aprazível, boa ocupação, talvez motivo de aprendizagem e, o que não é menos, mostra de elevada cultura. Mas para um narrador, o que é ela, a obra, afinal? Um sem fim de aborrecimentos, cefaleias e centopeias de letras que urge corrigir e redigir e re-redigir… Para dizer a verdade, perdi já o fio à meada. Já nem sei por onde começar. Tudo isto me parece ardil para que eu acabe por me ver enredado em trabalhos, como em rede de pesca de malha fina, e, francamente, tudo isto começa a desgostar-me. Tem o autor a fama, fique também ele com os encargos, que para mim não os quero. Ele que decida na sua cabecinha por onde há-de começar a narrativa e que de facto a comece se assim o entender. O espaço de trabalho exige condições…
Mas bom, suponho que a vida seja mesmo assim, sobretudo a dos narradores, que não escolhem para quem trabalham, que isto não está para nos fazermos esquisitos. No entanto, caramba!, isso desgosta-me. Desgosta-me profundamente. Um homem não pode submeter-se a tudo, nem dar a outra face porque já lhe esbofetearam a primeira.
O problema são os palermitas destes escritores que nunca sabem muito bem o que querem. O que é verdade num capítulo pode já não o ser noutro a seguir, e se escrevem a primeira linha sabendo já todas as personagens que pretendem espalmar nas páginas feitas herbário de gentes, isso já não é mau de todo. Com efeito, isso seria já razão sobeja para brinde com Champagne e degustação de caviar Ossetra do Mar Cáspio. Perderia horas, e asseguro-lhe que não exagero, querida leitora ou caro leitor, se me pusesse para aqui a desbobinar sobre a quantidade de vezes que passei noites em claro a decorar nomes que na manhã seguinte já não serviam a ninguém, ou que, mantendo-se, pertenciam agora a outras personagens inteiramente novas. Um verdadeiro ver se te avias de nomenclatura! Um carrossel de gente a ir e vir, aos molhos por aí, descabelados, deitados ao vento, outros pelo chão, a rodos pela casa ou perdidos entre as páginas, como o pó dos dias. Como o pó do dias o diabo!, que com o pó posso eu bem. O que me incomoda são esses desconhecidos em fila que me esfregam diante do nariz, e a esses não há vassoura nem espanador que os afaste, nem pano dos anúncios que o aprisione. E quantas personagens, imagine-se se disso se for capaz, levei eu a enterrar, cavando buracos alumiado pelo negrume da noite, tal qual fazem os assassinos, por vezes apenas para tornar ao lugar na noite seguinte com o fim de as desenterrar e, feito paramédico, as trazer de novo à vida, convencendo-as de que nada se passara e de que aquela dor nas costas se deveria, decerto, puramente a uma noite mal dormida. Noite. Para os narradores é quase sempre de noite, que os escritores nisso lá se parecem com os criminosos. Isso vos digo eu, que já com vários trabalhei, até me ter esquecido, enfim, a dada temporada, de que a noite fora feita mais para as corujas do que para os Homens. E quantos vezes não é necessário metermo-nos na cama com eles, que aquilo é gente sem horários mas com manias, e não são poucos aqueles a quem dá para escrever deitados? Um desatino, vos digo eu, quando se põem a acordar pela noite dentro. Soerguem-se um pouco para acender a luz − por vezes espreitam até as horas; dá ideia de que para nos fazerem sofrer um pouquinho mais −, abrem o caderno, pegam na caneta e lá voltam eles àquilo. Com os olhos inchados da bebedeira sonâmbula, lá riscam umas letrinhas muito feiosas, por vezes falhando até a pauta das páginas, descaem a cabeça sobre um braço nos interstícios do pensamento, vão dormitando enquanto procuram reatar o fio ao texto, tapam e destapam a caneta sem nada ter escrito entre duas repetições do gesto, às vezes acabam por pontuar inadvertidamente o lençol, humedecem o dedo com a língua para tentar apagar o traço, não conseguem, resmungam, assentam mais umas palavras no caderno – nem sempre as mais indicadas, como o prova a clarividência da manhã seguinte – para mostrar que valeu a pena. A cabeça torna então a descansar sobre a mão ainda armada pela caneta, e a gente ali com eles, sem conseguir dormir no sossego que a noite devia garantir. Se ao menos não houvesse luz… Ah, de todo não percebo por que há-de alguém desejar casar-se com eles.
Por que há-de alguém ter uma profissão assim?, pode o leitor também perguntar, e afianço-lhe que responderia prontamente, se a isso estivesse eu habilitado. Mas que posso eu dizer-lhe? Afinal, não é melhor o emprego que me calhou a mim.
Hugo Picado de Almeida,
Narrador desencantado.