Cultura, Pensamentos

O Acordo é, efectivamente, um Desacordo

Não sei se já vos disse, mas aqui me confesso: sou violentamente contra o Acordo Ortográfico.

Façam-me a gentileza de ter paciência e embarquem comigo num breve raciocínio:

Imaginem que um dia, sob pretexto de tornar os edifícios mais uniformes na sua estrutura, um qualquer regulamento obrigava a que todas as construções usassem o mesmo tipo de cimento: um cimento certamente livre de algumas impurezas, de alguns químicos, e supostamente mais fácil de aplicar, dito mais eficiente e aperfeiçoado; um cimento mais flexível que qualquer pedreiro soubesse usar, independentemente das técnicas particulares a que estava acostumado.

Imagine-se, agora, que, com o tempo, se viria a descobrir que, afinal, o tal cimento não só não era mais fácil de aplicar – porque este cimento não obedecia a nenhumas regras físicas em particular -, como acabava por rachar também em algumas situações, começando os prédios, que anteriormente se aguentavam em pé durante muitos anos, a colapsar poucos dias após a sua construção. É que este era um cimento que permitia uma construção de procedimentos facultativos; um cimento que, por ser mais fácil de manusear e sem obedecer a muito restritas regras físicas, cada pedreiro usava efectivamente como mandava a sua preferência ou o seu costume.

Não seria um cenário feliz. Ora, é isto que acontece com o Acordo Ortográfico.

Sob o pretexto de tornar uniforme o português das várias regiões do Mundo, o edifício da língua começa a desmoronar-se. Em tom de gozo, falamos de um DesAcordo Ortográfico, mas é verdadeiramente disso que se trata. Não sei se já leram o artigo do Diário da República em que se promulga o Acordo; eu já, e não há nele nada que garanta a uniformidade da língua. Porque, convenhamos, quando uma lei diz que há que observar o que acontece “invariavelmente” nas “pronúncias cultas da língua” para decidir se se mantêm ou não as sequências consonânticas – e outras situações -, isso não é já lei alguma. Se a maioria dos falantes não sabe as regras básicas da língua, quantos saberão se nas pronúncias cultas da língua os c e os p antes de outras consoantes se lêem ou não? Pior: o que prescreve o acordo em casos em que a pronúncia culta da língua profere tais sequências consonânticas mas em que o uso circula entre a prolação e o emudecimento, como acontece com aspe[c]to ou com rece[p]ção? O uso facultativo, triunfo encapotado de livre arbítrio de quem não tem resolução coerente para os problemas formais que criou, e que não se apercebe de que, assim, cria ainda outros tantos.

Uma língua é como a matemática; um sistema de regras, um código. E assim como na matemática não pode ser facultativo representar um 6 com a “perna para baixo” (9), também na língua o facultativo não pode existir, sob pena do sentido se esvair em sangue e de tornar, assim, a língua vazia, não mais do que sons que passam a ser uma nebulosa, não sendo muito certo o que querem os seus falantes dizer. É isso que acontece quando o Acordo torna também facultativo o uso de acento agudo no pretérito perfeito: amámos e amamos podem, assim, significar exactamente o mesmo. Presente e passado iguais; que triste fado para uma língua que se gaba de ser a única a ter uma palavra para saudade.

«Facultativamente» é, infelizmente, uma das palavras mais comuns neste Acordo, e isso é algo de assinalar. Supõe-se que, num acordo, haja acordo entre as partes: é esse o princípio base que sustenta a sua capacidade uniformizadora, a sua harmonia, o seu poder e o seu objectivo. Mas o Acordo, que os nossos governantes dizem necessário para fazer face à necessidade de ter uma língua uniforme para o ensino do português no Mundo e para o afirmar como língua de trabalho em instituições internacionais, falha precisamente aí. Na tentativa de promover uma língua uniforme, o Acordo logra até produzir o dúbio artificial e instaura oficialmente a grafia dupla.

 

Hugo Picado de Almeida

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22 thoughts on “O Acordo é, efectivamente, um Desacordo

  1. Também não apoio o Acordo Ortográfico, apesar de actualmente entender que é algo que irá acontecer. O meu problema em relação a toda esta “consistência linguística wannabe” é que é tão consistente que depende em bastantes casos… da forma como se diz. Ora eu uso sempre esta piada mas que ilustre um tema sério: e se eu de hoje para amanhã quiser pronunciar “Egito” como efectivamente “EgiPEto”? (fica o exagero, mas novamente para ilustrar o meu problema) Já se torna válido para mim escrever “Egipto”? Ou já temos uma exceção à excepção?

    • O Acordo parece contradizer-se nesse ponto. Ainda assim, o texto do Acordo refere explicitamente o caso de «Egito» como um daqueles em que se deve eliminar o «p», porque este se inscreve nos «casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua».
      Dito isso, no ponto seguinte afirma-se: «Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento». A questão parece, assim, poder reduzir-se ao imbróglio que é descortinar se haverá proximidade entre o número de pessoas que dizem «Egito» e o número dos que dizem «Egipto»…

    • Cristina Santos Silva diz:

      …e já agora, pegando no seu exemplo como se passarão a designar os naturais do Egito? Egicios????? Egitos?????
      Também sou convictamente contra este acordo!!!!

      • Cristina,
        Quanto aos naturais do Egi[p]to, mantêm-se como «egípcios», porque nesta palavra o «p» é sempre pronunciado. É mais uma das incoerências gráficas que o Acordo permite… Por aqui se vê que não tem sentido um dos argumentos dos mentores do Acordo, de que a abolição de algumas das consoantes facilitará a aprendizagem das crianças.

        Hugo Picado de Almeida.

    • Pedro da Silva Coelho diz:

      Caro Roberto,

      Permita-me que discorde de si quanto à inevitabilidade do Acordo Ortográfico de 1990. Há pelo menos uma via de o travar, com fortes possibilidades de sucesso. A Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990 (http://ilcao.cedilha.net) está a recolher assinaturas para levar à Assembleia da República um projecto de lei visando a suspensão da aplicação do dito acordo. Sugiro-lhe que se informe através da hiperligação que reproduzi acima. Caso concorde com os conteúdos desta iniciativa, sugiro-lhe que a subscreva (através do formulário adequado), podendo fazê-lo via correio normal ou electrónico (vide FAQ’s em http://ilcao.cedilha.net/?page_id=288). Mais ainda, caso concorde, divulgue esta iniciativa junto de familiares, amigos e colegas, para que possamos fazer chegar as nossas vozes à sede da nossa democracia e para este reforma custosa, desnecessária, infrutífera e perniciosa.

      Um abraço,

      Pedro da Silva Coelho

  2. Pedro da Silva Coelho diz:

    Caro Hugo Picado de Almeida,

    Belo texto, aceite os meus parabéns. Acabo de partilhá-lo no meu perfil do «Facebook».

    Permita-me que lhe chame a atenção para a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990 (http://ilcao.cedilha.net), a qual está a recolher assinaturas para levar à Assembleia da República um projecto de lei visando a suspensão da aplicação do dito acordo. Caso ainda a não conheça, sugiro-lhe que se informe através da hiperligação que reproduzi acima. Caso concorde com os conteúdos desta iniciativa, sugiro-lhe que a subscreva (através do formulário adequado), podendo fazê-lo via correio normal ou electrónico (vide FAQ’s em http://ilcao.cedilha.net/?page_id=288). Mais ainda, caso concorde, divulgue esta iniciativa pelos meios ao seu alcance (o seu diário em linha, junto de familiares, amigos e colegas), para que possamos fazer chegar as nossas vozes à sede da nossa democracia e parar esta reforma custosa, desnecessária, infrutífera e perniciosa.

    Um abraço,

    Pedro da Silva Coelho

    • Caro Pedro,

      Como tinha acabado de lhe escrever em resposta ao seu comentário anterior, agradeço a sua intervenção e a partilha desta iniciativa. Vou divulgá-la e certamente que a ela me juntarei também.

      Agradeço ainda as suas simpáticas palavras e a partilha deste meu artigo. Ainda bem que lhe agradou.

      Um abraço,
      Hugo Picado de Almeida.

  3. alinegallaschhall diz:

    É um bálsamo para os olhos ver que, na blogosfera, há ainda muitos contra o Acordo Ortográfico.
    É medonho. É absurdo. Todos nós sabemos bem as razões que o tornam hediondo, mas também sabemos as razões que encapotam a aparente uniformização.
    Folgo em saber que há acções que tentam recuperar um Património Imaterial tão importante como é a Língua.
    Parabéns pela abordagem ao tema, Hugo, e pela sua preocupação.

    • É verdade, Aline. Felizmente há ainda muita gente atenta ao desastre que é o Acordo.
      Na blogosfera cabe-nos ir fazendo este “trabalho” de o contestar, de desmontar a lógica que nos querem impingir e de partilhar iniciativas que defendam a língua.

      Obrigado pelas suas palavras.

  4. Uma Língua viva nunca será como o cimento ou como a Matemática. Uma língua morta talvez possa ser com eles comparada. As línguas vivas estão em permanente evolução, em paralelo com a evolução da humanidade e do mundo que, infelizmente não acontece à medida de cada indivíduo. Na minha opinião, é um orgulho que a minha língua esteja em permanente enriquecimento pelo uso que tem em diversas culturas. Os Portugueses foram grandiosos ao difundirem o Português munfo fora. Isso é maravilhoso. Tantos “Velhos do Restelo” servirão para manter a vivacidade desta Língua, pela discussão de pormenores de lógica (e não de linguística)!

    • Vanda,

      Antes de mais, obrigado por comentar.
      Se me permite esclarecer, não sou contra a evolução da língua; sou contra o Acordo Ortográfico, o que é algo absolutamente diferente, como penso que concordará.
      Repare que nunca me afirmei sequer contra aquilo a que chamou o “enriquecimento [da língua] pelo uso que tem em diversas culturas”; reforço, sim, que me afirmei contra o Acordo Ortográfico. Tal como a Vanda, estou tranquilíssimo com o uso que o português tem noutras partes do mundo, e isso até me deixa muito feliz, sobretudo pela forma como enaltece a literatura lusófona, e como permite difundi-la. Agora, aquilo com que não concordo é que nos queiram impor uma língua artificial, uma mistura de usos que nunca serão os nossos; usos que, no seu todo, fazem até pouco sentido.
      Acima de tudo, aquilo a que mais me oponho neste acordo é a não observância das condições que os seus mentores têm usado para o justificar. Dizem que o objectivo do Acordo é uniformizar a língua, mas as regras nele presentes não tornam a língua uniforme de forma nenhuma; instauram, sim, imensos casos facultativos e grafias duplas. Dizem que o objectivo é uniformizar a língua, mas dos 8 países abrangidos por ele só 3 ratificaram o acordo e vão, por isso, usar o “novo” português.

      A língua está em constante evolução, tem razão, mas isso já acontece hoje e não através de nenhum Acordo. O uso de “melhor” ou de “mais bem”, por exemplo. Começa a ser aceite pelos especialistas o uso de “melhor” em casos onde, realmente, deveríamos usar o “mais bem”. E porquê? Porque os falantes assim o têm usado ao longo do tempo. Há mais exemplos.

      Quanto ao “cimento” e à “Matemática”, compreende certamente o contexto e o sentido em que os usei, pelo que me absterei aqui de os comentar. Insisto, porém, que tal como a Matemática, a língua tem um conjunto de regras que torna o seu uso com sentido possível, e posso afirmar-lhe com segurança que a Matemática também está em evolução. Há descobertas a acontecer no campo da matemática. Agora, essa evolução não significa que os números passem a ser escritos de outra forma, ou que as operações mais simples ganhem novas formas, e é isso que pretendo dizer através deste artigo.

      Mais uma vez, agradeço a sua participação neste espaço.

      Hugo Picado de Almeida

  5. Isabel Rodrigues diz:

    Porque temos de ser diferentes… Nunca ouvi falar em AO nos paíse anglo saxónicos ou francófonos. Adorava ver como reagiriam os franceses se se lhes retirassem a acentuação às palavras :))

    Se formos ao Canadá – Quebec – o francês que lá se fala é tão diferente do francês que se fala em França e não houve AO e todos se entendem, porque na escrita, na gramática ninguém mexeu. Se ler um jornal lê em francês e não em quebequoi.

    Por essa razão sou contra ao empobrecimento da nossa língua em detrimento de um linguagem sem rei nem roque, porque convenhamos que o que aqui se passa é tão somente falta de cultura e falta de rigor nas nossas escolas.

    Por tantos traumas dos “piquenos” chumbarem logo no 1º ano por não saberem ler nem escrever.

    Deixemo-nos de fantasias e cacarejos e respeitemos a língua do nosso país.

  6. eu xamo’lhe acordo MORTOGRAPHICO e axo ke fica tudo dito…e nao me venham dizer ke nao acho bem… a sério: se ate aqui os portugueses escreviam maioritariamente MAL daqui para a frente nao havera nada a fazer : a confusão REINARÁ… ou sera apenas mais uma prova da nossa falta de soberania a tentar adaptar-se ao brasilez…porque afinal eles sao a maioria e como escrevem mal nos teremos de tb escrever mal para nao destoarmos…? enfim ,mais uma tristeza portuguesa…a acrescentar a bancarrota economica

  7. Pingback: Artigos contra o AO (Parte 2) | esquinas

  8. Boa tarde,

    Agradeço o comentário no meu blogue e retribuo enderençando felicitações pela excelente construção do texto. É um artigo elucidativo e importante na contenda que envolve este “desacordo”. Vou partilhar no facebook.

    Abraço,
    Ivo Rocha da Silva

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